sexta-feira, junho 30, 2017

Caminheiro Sem Pressas...


Deixo que os rios secos e tempestades de sons ausentes
Na memória de outros maios se inscrevam na saliva
Das palavras balbuciadas em que digo amor em fim de tarde.
E assim administrando amoras tardias em círculo de sol dos
Lábios ciosos destes gestos que se derramam inesperados
Frutos desprendendo-se de maduros ou chuvas
Em deserto absorvidas.

Viajo caminheiro sem pressas recostado nas bermas
Celebrando as sombras e as festivas giestas outonais
Sorvendo o mel das silvas soltando revoadas
Tordos espantados que riscam o abismo dos olhos.
E ai me perco nessa voragem matizada de cores quentes
Nos odores persistentes na humidade translúcida dos beijos
Na generosidade dos seios e no declive dos lábios e no cio
Das colheitas e na sofreguidão de cestos antes das uvas-

E nas ondas que arrebatam e na ferida aberta.
E nesta lava e neste de lume que consome e nesta festa
Que explode em pulsão de madrugada...


Manuel Veiga

terça-feira, junho 27, 2017

ESTE É NOSSO TEMPO


Somos o sonho milenar das Pátrias e a Promessa
Que habita o sangue dos escravos e escalda
A mente dos poetas.

E em cada gesto uma flor indecifrada
Que se levanta e se estende generosa
Prenhe de vontade
E gloriosa
Em seu jeito
De florir.

Nada além de cada Aurora
E os fios que nos atam
Frutos em espera
Como gomos
Em boca
Ávida.

Sabemos que o pão que amassamos
Nunca será mesa em nos que sentemos
E no entanto dizemos:

“Este é o nosso Tempo
Semeemos”!...

Manuel Veiga

"CALIGRAFIA ÍNTIMA"
Poética Edições - Maio 2017

sábado, junho 24, 2017

MORRER DA CURA?

Nunca, porventura, como hoje, se falou tanto de democracia. Nem as liberdades cívicas e políticas foram tão enfaticamente proclamadas. Umas e outras são apresentadas como a “coroação” do devir social e político da Humanidade, como se do fim da história se tratasse e, em seu nome, se têm desencadeado as maiores barbaridades e se oprimem povos e nações...

E, entretanto, na “teatralização” da democracia, vicejam por todo o mundo os valores do mercado e prospera o poder dos interesses económicos e financeiros do capitalismo mundial.

Claro que a democracia representativa tem inquestionável valor intrínseco, que importa defender e aprofundar. A questão, porém, é o reconhecimento cada vez mais amplo, até por pessoas insuspeitas de partilharem ideias revolucionárias, que afirmam ser muito ténue “a ligação do capitalismo à democracia” e cépticos se interrogam “se a democracia é compatível com os valores do mercado".

Esta será, portanto, nos dias de hoje uma contradição fundamental do capitalismo, enquanto sistema social dominante – por um lado, a proclamação enfática dos valores da liberdade e da democracia; e, por outro lado, os constrangimentos cada vez maiores dos direitos individuais e colectivos dos cidadãos.

Neste contexto, é reconhecida a indiscutível “plasticidade” do sistema capitalista, quer dizer, a sua permanente adequação às condições históricas concretas. Nesta perspectiva, a dominação capitalista não se exerce, presentemente, através da derrogação ostensiva dos direitos, liberdades e garantias, como nos regimes fascistas e protofascistas; pelo contrário, os direitos, liberdades e garantias individuais constituem acerbo histórico da Europa e do chamado mundo ocidental e, enquanto tais, são híper valorizados em termos de ideologia. 

Porém, é cada vez mais evidente que os Estados democráticos - que historicamente constituem o suporte da cidadania e dos direitos individuais e colectivos – estão cada vez mais condicionados pelos objectivos e pela lógica do capitalismo global.

Na realidade, como bem se sabe, a lógica do dinheiro e do lucro não se compatibiliza muito bem com as “minudências” da democracia.

Na óptica do capitalismo dominante, é sobre os trabalhadores e os direitos sociais, tão penosamente conquistados, que devem recair os custos da recuperação da económica e de auto reprodução do sistema. Sempre assim foi.

A novidade será a “violência da receita” e o fosso, cada vez maior, das desigualdades económicas e sociais que semelhante receita provoca e o consequente mal-estar social que atinge as sociedades ditas democráticas.

Nesta perspectiva, o que poderemos ardentemente desejar é que ao sistema capitalista aconteça o mesmo que aconteceu ao “cavalo do inglês” que, coitado, morreu da cura e não da doença.  


Manuel Veiga


quinta-feira, junho 22, 2017

DA CRIAÇÃO DO MUNDO


 Desprende-se o poema. Brevíssimo sopro.
Ou colisão ínfima que estremece. E se agita. Inesperada.
No absurdo silêncio do Mundo.

Murmúrio de sarça. Arde. Como inflamadas cores                
Sobre a Árvore do Tempo. Ou toda a vida
No sopro do instante – meteórica luz divina...

Desprende-se o poema. Sem resguardo.
E nessa agitação volátil um breve prenúncio. Ou esboço.
E o rosto invisível das coisas a rasgar
A finíssima placenta.

Que a Palavra então seja criatura
A aguentar o peso e as dores do Universo.
E testemunho vivo do humaníssimo
Gesto da Criação do Mundo


Manuel Veiga

CALIGRAFIA ÍNTIMA
Poética Edições – Maio 2017

terça-feira, junho 20, 2017

ACRE LUCIDEZ DE CINZA...


Nego-me à estética do Horrível
E à música de Wagner como se a cavalgada
Da Morte fosse Coppola ou enfeite a enquadrar o telejornal
Nauseabunda esteticização do Desastre
A celebrar o Espectáculo dos corpos e das casas
E as labaredas a lamber os impassíveis olhos
Mal refeitos ainda da voragem do Pânico.

Nego-me ao microfone em riste
A invadir as bocas e colher a baba das palavras
E escarafunchar o pormenor da Lágrima
E a dobra da Agonia como viver ou morrer fosse
Noção escorreita perante e iminência da Morte.

Nego-me a doutas opiniões e ao grande Debate
E ao arroto da Sabedoria ao serviço da Ganância
A desenhar manobras e as invisíveis rotas
Do Lucro e permanente encenação do Mesmo.

Nego-me ao leilão das alvas consciências
A pingar em fila da Banca e do altos muros
Da Instituição. E nego-me aos caninos cibernantropos
A salivarem tweets e likes e rabinho electrónico
A dar a dar e a babarem-se sem ao menos saberem
Que nada representam – pálida imitação dos Donos.

Nego-me a esta impúdica exasperação dos lugares.
E da Dor, que sendo minha, é apenas Simulacro
Palavra que não (me) redime, nem salva
E que, no entanto, teima - acre lucidez de cinza.

Manuel Veiga

sexta-feira, junho 16, 2017

BORBULHAR DO TEMPO


Murmúrio de água no interior
Do caule. Estalactite líquida
Na inocência da luz
E imaculado gesto
Da cor a abrir-se
Na vibração
Do ar

A espera é borbulhar do tempo
Apenas movimento
Que reclama forma
E se despenha
Na apoteose
Da palavra
A erguer-se
Poema.

Ou númen.
Ou nome sem nome:

Flor a arder
No coração
Do Mundo.

Manuel Veiga


quarta-feira, junho 14, 2017

UMA HISTÓRIA SIMPLES - Convite




 Ao princípio, antes dos nomes,
Quando todas as coisas fluíam na inocência do porvir
Acordou, na margem, aos olhos do poeta,
Uma centelha (ou uma lágrima) fulgurante
Que a si própria se ergueu e se ungiu
Como Prodígio. E Mensageira.

E então todo o Caos se (des)ordenou.
E todas as cores e todos os sons.
E todas as formas. E todas as fórmulas.
E todos os ritos se abriram.

E todos barros...

E todas as sarças foram chama a arder na boca
De todas as palavras.

Manuel Veiga 

"CALIGRAFIA ÍNTIMA"
Poética Edições - Maio 2017


segunda-feira, junho 12, 2017

FRAGMENTOS XLII - Maria Adelaide no seu melhor



Foi pois o Alferes ao encontro do Capitão Mascarenhas que, terminado o bridge e o conhaque, ordenara a sua presença, no gabinete do Comando e Sala de Operações, amplo espaço da vivenda, que antes fora alcova e leito de Dona Rosalinda e campo de outras refregas, que para aqui não são chamadas, trespassado o Alferes pela pungência de recordações tão vivas e tão acesas que escaldavam o crânio, a explodirem entre o apelo da memória e premência da ordem do Capitão Mascarenhas, intrigado o Alferes de tal urgência, pois que, na rotina dos dias na Tabanca, assimilada a certeza que os dias de ripanço e fluidas leituras haviam terminado, nada fazia prever a magna reunião, entre o Comandante da Companhia de Cavalaria e seu Adjunto.

Na realidade, com a urgência que as circunstâncias ditavam, “todos os civis haviam sido imediatamente evacuados”, conforme a ordem militar que assim o determinara, depois dos traços, letras e números desordenados em que tal ordem se dizia, ganharem, pelo engenho do “cabo da cifra”, expressão gramatical, bem se sabendo que os ratos são os primeiros a abandonar o navio em transe de naufrágio, assim também, o agente da PIDE, Rolão Antunes, olhos e ouvidos do poder colonial-fascista naquele remoto lugar, desandou, com folgada antecedência, rumo a Bissau, levando de boleia o agente comercial da C.G., o filho da puta Gaspar, seu alter ego, conhecido em toda Tabanca, negros e brancos, por “kamenino”, alcunha lapidada na vergonha, se vergonha houvera, pelo assédio vicioso aos garotinhos negros que a troco de umas guloseimas lhe frequentavam a casa e lhe aplacavam os ardores e ele, Gaspar, filho  da puta mil vezes e agente comercial da todo poderosa C.G., unha com carne com o Armando, que o diabo o levara, no dizer de Dona Rosalinda, roído de febres e remorsos e que, numa noite quente, em qualquer bar do Cais Sodré, num tempo outro atrás narrado, o Armando arrebatou a ela Rosalinda, nos requebros de um tango, corpo coleantes de sensualidade e paixão e de cabeça esquentada por promessas, beijos e fantasias, ele Armando, rapagão trigueiro e bem-falante, a levou a ela, Rosalinda, mulher esquiva e séria, atrás de um sonho, que virou inferno e arraial de porrada, naquele cú do mundo que era a Tabanca.

Ora, sendo que “todos os civis haviam sido imediatamente evacuados”, como ficou atestado, não por obediência à ordem militar expedida, embrulhada e dissimulada em letras e números e chegada legível às mãos do Alferes por esmerado exercício de decifração do “cabo da cifra”, mas por agudo instinto de ratos sempre os primeiros, como bem se sabe, a pressentirem o perigo e a abandonarem o barco, sendo pois certo, como dois e dois serem quatro, por assim o autor (como se autor houvesse) o afirma e atesta que, num tempo já acontecido não narrado ainda, sabendo-se, pois, que o velho caturra, o senhor Gomes, marinheiro e desterrado, que nos idos anos de 1936, embarcou na aventura da Revolta dos Marinheiros teimou em ficar na Tabanca, que sua Pátria era aquela e ao destino daquela população se sentia ligado e, assim o dissera e fizera escrever e assinara, tudo assim visto e ponderado à luz dos acontecimentos acontecidos e outros por acontecerem, apenas Dona Rosalinda seria evacuada “manu militari” e, lacrimosa, por seus próprios pés, que é como quem diz, por sua própria perna e cadenciado balanço do anafado traseiro, se alcandorou às alturas da cabine do camião militar, que a devolveu à sede do Batalhão de Cavalaria e daí para Bissau, não sem antes, perante um coro brejeiro de assobios, dar dois repenicados beijos na face do atordoado Alferes, por entre o gesto de lhe colocar no pescoço o pequeno cruxifixo preso em singelo fio de prata, que sempre usara e a comovente recomendação “cuida-te, meu filho, tu ainda és um menino e esta guerra é uma merda, que Deus te guarde", frase e gesto que haveriam perdurar, como tatuagem de alma, nos passos e nos descaminhos do jovem Alferes, neste tempo narrado, indo ao encontro do Capitão Mascarenhas e atravessar agora o amplo espaço da vivenda, que antes fora alcova e leito de Dona Rosalinda e campo de outras refregas e transformado em Sala de Operações da Companhia de Cavalaria, paredes cobertas de mapas e ornadao no topo, onde antes fora cama, por uma imponente secretária metálica, como é de uso militar.

Pressinto, Maria Adelaide, o teu gesto de enfado, a pequena ruga atravessar-te a altiva testa, a luminosidade dos olhos e o sorriso contido, num esgar de ironia forçada, que mal encobre a tua sede e o desejo de outras margens, correntes íntimas que desatas, quase em desespero e onde colhes e recolhes a essência de nossos passos, por vezes lava acesa, outras mansidão, e quando em transe de desassossego te são irritantes, rasando os limites da agressividade na tua palavra afiada. E soltas, então, Maria Adelaide a acidez do verbo agreste, em ricochete de uma sede não satisfeita: 

“Que raio de coisa, Manuel este teu afã estéril de correr atrás da sombra, num redemoinho de poeiras que apenas em ti se projectam e que poderão ludibriar outros, mas não a mim, que te conheço todos os artifícios de sedução. Essa tua escrita enrolada a fazer que anda, mas não anda, qual cavalo amestrado em picadeiro, fazendo cortesias vazias de aplausos, meros acenos sem eco, mise-en-scène sem plateia em que apenas tu provas o gozo ou o veneno, serpente mordendo a própria cauda, circulo de cinza ardida, sinais dispersos com que, qual podengo enxotado, pretensamente procuras marcar teu território de escrita, já que originalidade, meu caro, vou ali e já venho, mais não fazes que repisar passos andados, na literatura e no cinema, elidindo o tempo, para melhor poderes esconder-te como sujeito da escrita (como se autor houvesse, dirás tu) e assim deixares que os acontecimentos “falem” sem mediações, numa pretensa modernidade, que, noutros será porventura arte, mas, no teu caso, mais não é que impossibilidade e o impasse de escrita, que te faz “suar as estopinhas” para te livrares das teias que te embaraçam a narrativa.

Meu caro, apressa-te. Diz ao que vens, na escorreita escrita de que és capaz e deixa-te de gorjeios de pássaro na gaiola, prisioneiro do próprio cântico, qual narciso espelhando-se no lago. Já não há paciência para tantos rodriguinhos e rodeios!... 

Apressa-te e, numa prosa enxuta e lisa, conta a tua história, para teu gozo pessoal apenas, pois que não faltam por aí “estórias” bem contadas à procura de leitores”.

Assim falou Maria Adelaide, licenciada em Letras e Línguas Modernas, qual pitonisa do templo de Calíope, agastada e docemente suspensa de um beijo e do capricho e o frémito de um livro roubado,  lá atrás, numa livraria de Lisboa.


quinta-feira, junho 08, 2017

NA OUTRA MARGEM DO SILÊNCIO.


Na outra margem do silêncio
Onde a palavra ferve e indomável se arrisca
A arder em fervor de penitência
E a dissolver-se inócua no magma corrosivo
Onde todos os sentidos se aniquilam –
Jogo de significações espúrias –
E no entanto teima.

Essa palavra insubmissa
Que na outra margem de todos os silêncios
Queima os lábios dos poetas e se liberta insana
E descarnada se faz cinza
Sem mais nada que a detenha
Que não seja arder
Sem mácula.

Nesse ponto-fuga da palavra exacta
Que na outra margem do silêncio explode
E se faz nuvem ou paixão acesa
Já não palavra – abre-se rosa de lume
Nas dores do Mundo –
E tempestade.

E recolhe-se exaurida e livre
E nas ardidas pétalas
Do poema –

Coisa de nada!...

Manuel Veiga


terça-feira, junho 06, 2017

DEMOCRACIA versus CAPITALISMO! ...


Há uns anos atrás, nos alvores dos anos 2000, o célebre financeiro George Soros, num livro sugestivo com o título “A Crise do Capitalismo Global – a Sociedade Aberta Ameaçada”, interrogava-se – cito de memória – “se a democracia seria compatível com o sistema capitalista”.

Embora o capitalismo esteja associado à democracia e lhe tenha servido de legitimação ideológica, considera, no entanto, o financeiro, no citado livro, haver quem sustente ser necessária uma “certa forma de ditadura para que o desenvolvimento se desencadeie”.

Pois não é verdade que, entre nós houve quem, enquanto ministra das Finanças, tivesse sugerido a “suspensão da democracia por uns tempos” até as contas públicas ficarem em ordem. Procurou a pessoa em causa rectificar depois, como se ironia fosse, mas o agravo à democracia ficou. Sem remissão…

Com o ressurgimento de movimentos da extrema-direita na União Europa, a vitória do Brexit e a previsível vitória dos conservadores nas próximas eleições, no Reino Unido, bem como a eleição de Trump para a Presidência dos Estados Unidos da América do Norte, têm, ao que parece, feito tocar as campainhas de alarme e a sobressaltar os espíritos mais lúcidos e as consciências mais inquietas.

Para a opinião pública norte-americana mais informada, o embate entre capitalismo e democracia deve soar realmente com muita estranheza e perplexidade. De facto, a democracia e o capitalismo sempre se constituíram como irmãos siameses “nos actos fundadores” da grande nação norte-americana. E a fusão (melhor seria dizer a “confusão”) entre a democracia e capitalismo foi, como se sabe, leitmotiv durante a guerra fria, para os governantes e opinião pública norte-americanos, que, na sua propaganda e acção política, sustentavam serem o comunismo e democracia incompatíveis.

Mas depois da guerra fria as coisas complicaram-se. É verdade, que após o colapso da URSS, os políticos norte-americanos e os intelectuais que, por todo o mundo os servem, quiseram fazer-nos acreditar que levar o capitalismo à China seria a proclamação da democracia naquele país. Vê-se agora o tamanho da presunção. A China está sentada numa montanha de títulos de dívida pública norte-americana, sem o mínimo abalo no regime político, que sustenta os enormes ritmos de crescimento e de exploração.

Se nos quisermos aproximar da realidade europeia, então constataremos que a democracia, a “tal santa que continua mumificada nos altares” como diria Saramago, tem sofrido, nos últimos tempos, tratos de polé. Em nome da austeridade, as grandes instituições financeiras abriram, sem pudor, guerra aberta aos governos e instituições democráticas.

Assistimos, assim, estupefactos, a que os ditos mercados capturem a democracia, de forma deliberada e pensada. Políticos, então, no exercício de funções governativas, sustentaram, sem pudor, que os seis países da zona euro, com a classificação triplo AAA, pelas agências de rating deveriam ter “mais voz” nos assuntos económicos europeus que os onze membros restantes. E, assim, a Europa meridional ficar subordinada politicamente à Alemanha e à Escandinávia e, em última análise, aos ditames da classificação creditícia pelas agências especializadas.

Grave é que tais ideias fazem caminho nas instâncias comunitárias, como foi bem patente nos últimos anos, em que a democracia (mitigada) no funcionamento da União Europeia se vergou à vontade da senhora Merkel.

Bem vistas as coisas, o que os denominados mercados estão a fazer é ilidir a componente de igualdade social dos indivíduos e dos Estados, inscrita na matriz da Democracia e na génese da revolução liberal. E, em alternativa, ao princípio, de “um homem um voto”, como a matriz da democracia representativa impõe estabelecerem o princípio de “um euro, um voto”, quer dizer, a “condição de proprietário” (deter poder económico) para se poder ser beneficiário da Democracia.

Uma regressão histórica que nos remete para a antiga Grécia e, na história moderna, para o século XVIII, em que o “direito propriedade” estava acima de qualquer legalidade constitucional, como, aliás, a constituição de alguns estados norte-americanos ainda consagra.

Manuel Veiga




domingo, junho 04, 2017

ESPÓLIO DE MEUS SONHOS...


O dia, em que um poeta foi a enterrar, entreguei-te
O espólio de meus sonhos.

Talvez recebas apenas
Minhas cãs em desalinho. Ou as cinzas pela antiga casa
E as maças emolduradas. E a sala de visitas
Deserta e o silêncio dos passos.
E o chocolate fervido e o vinho quente
A atapetar o palato
E as narinas.

Ou talvez a brusca debandada de meus olhos
Tordos acesos a riscar o ar e agora baços.
Ou o espúrio cio dos gomos.
Ou o calor íntimo das amoras
Mel silvestre a tingir as bocas
Ante o incêndio
Das salivas.

E encontrarás, estou certo, um ramo de lírios
Desbotados, acabados de colher, e o regaço
Da Mãe e a criança solitária e o fio de água
De meus olhos agora secos.

Talvez a bênção do dia e missa dos sentidos
Encontres nessa caixa de abandonos.

Ou aquele poema amarrotado
De que me faço distância e eco
A martelar nos ouvidos
Como remorso
Ou destino:

Que mais nada tenho! …


Manuel Veiga




sábado, junho 03, 2017

Dia Europeu e Mundial da Abolição da Pena de Morte




Dia Europeu e Mundial contra a Pena de Morte – 10 de Outubro ver

O dia 10 de Outubro é um dia de acção e reflexão no qual várias Organizações Internacionais Não Governamentais, Associações, governos locais, cidadãos anónimos e também o Conselho da Europa incentivam e sensibilizam os Estados que mantêm a pena de morte, a abolir tal prática das suas leis penais.

Portugal aboliu a pena de morte pela Carta de lei do Rei D. Luís pela qual sanciona o decreto das Cortes Gerais de 26 de Junho de 1867 que aprova a reforma penal e das prisões, com abolição da pena de morte.



Numa carta de Vítor Hugo, conhecido activista da causa da abolição da pena de morte, enviada a Brito Aranha, a 15 de Junho de 1867, é expressa a felicitação a Portugal pela aprovação da Lei: 

"Portugal acaba de abolir a pena de morte. Acompanhar este progresso é dar o grande passo da civilização. Desde hoje, Portugal é a cabeça da Europa. Vós, Portugueses, não deixastes de ser navegadores intrépidos. Outrora, íeis à frente no Oceano; hoje, ides à frente na Verdade. Proclamar princípios é mais belo ainda que descobrir mundos,"




sexta-feira, junho 02, 2017

FRUTA E PEQUENO ALMOÇO - Armando Silva Carvalho


E chega a vez das frutas.
São elas que enobrecem a impureza dos dentes,
As cavidades ocultas,
Todo o oco do ouro exibido pelos pobres
Em tempos menos austeros, em pequenas rodas da fortuna
Que se traz na boca, um açaime com poder.

Sobre a mesa, olho ainda as maçãs no escuro de Clarice,
A outra, inaugural, vermelha, de Sophia, numa pausa em que a
Escrita
Pode ainda derrubar os cálices de ambrósia na cozinha,
E me põe a mastigar o sumo das sílabas
Solares.

Porque há sol sublime
E a manhã ainda é um nome, disse outra poetisa,
Surgindo em colação.

Oh, o sopesar das laranjas de infância, sugando até à casca.
O fabricar dessa música dourada
A plenos pulmões, engasgava-me de vida
Uma tonta criança de triciclo,
Tão só a pedalar com os gomos na garganta,
Abrindo pela solidão adentro uma estrada só de fruta,
Frágeis mãos ao volante, garoto alucinado,

Caminho divido, pela penumbra da sala, pela polpa da memória,
Mas escondo eu a faca que reparte,
E o gume agudo e bruto
A sede de justiça dos pomares, a balança infantil
Das mãos dos deuses?

Sentado penso melhor, a sofreguidão fez com que empurrasse o Dia para o sumo,
Apalpo agora o veludo do pêssego,
Ensino à língua o sabor do outono, a suave alquimia
Das frutas demoradas,
A melodia intrínseca, essa aliança de sabores e saliva,
Esse desfazer do eterno sob o céu rapidíssimo
Da boca.

Armando Silva Carvalho –
“A Sombra do Mar” – Assírio&Alvim – Março 2017


quinta-feira, junho 01, 2017

QUE FAREI COM ESTE BLOG?


Relógio de Pêndulo – Apresentação

“Relógio de Pêndulo” não vem acrescentar nada ao muito que por aí se escreve, com maior ou menor qualidade. Passará discreto. É essa a sua vocação! Não entrará seguramente nas discussões idealistas sobre a importância dos blogs na democratização do nosso espaço público. Aliás, não tenho ilusões quanto aos blogs como instrumento de intervenção social. Queira-se ou não, a vida é lá fora e a política faz-se na praça pública. Tenho como adquirido que, no mundo da blogsfera, todos são “primos e primas” numa pequena aldeia global, alimentando pequenos clãs de afectos ou de meras simpatias, nas quais cada um se (re)conhece e (auto)reproduz como grupo, numa relação lassa e, certamente, gratificante, mas geralmente destinada a extinguir-se na espuma efémera dos dias...

Ao que venho, portanto? Direi que venho jogar-me numa folha em branco. Escrever é falar de nós. Mesmo quando nos ocultamos nas palavras que aos outros oferecemos. No jogo de máscaras - que as palavras, tantas vezes, são! - o rosto acaba sempre por se desvendar na sua verdade transparente. Dito de outra maneira, a palavra é sempre ideológica: diz-me como falas, ou do que falas, dir-te-ei quem és!..

E gostaria também de poder seduzir. Pela palavra, está bom de ver. Desejaria que os meus textos fossem apreciados por quem, eventualmente, os possa ler. É que a palavra, falando de nós, dá sabor à vida. Oferece-nos aos outros na dimensão dionisíaca do prazer. Diria até que a retórica da palavra (e a arte em geral) contribui para a erotização da vida. Diria... Se a palavra erotismo não estivesse tão poluída!...

Mas sejamos claros: falarei da “margem esquerda” da vida. Falarei de banalidades. Do riso e das lágrimas. Dos homens e mulheres concretos. Das emoções envergonhadas. E das gargalhadas espontâneas. Quem me dera ter talento para falar das qualidades (e defeitos) do Povo do meu País. E ser cronista das suas lutas...

Não tenho heróis. Mas confesso que os anti-heróis têm lugar cativo no écran em que me projecto. E as ideias heréticas e vencidas, que antes de tempo irrompem como húmus de futuro, são aquelas que povoam o meu ideário...


Porque, apesar de tudo, a Terra move-se...

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Este texto tem mais de 10 anos! 
Que farei com este blog?





Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...