quinta-feira, fevereiro 09, 2017

FRAGMENTOS XL


Evoco-te, Maria Adelaide, num capricho de narrativa, pois bem sabemos ambos que transportar-te para este cenário de guerra é o mesmo, mal comparado, que plantar flor delicada em estepe fria e que daqui sairás com a mesma sem razão com que agora chegas. Mas que queres tu, Maria Adelaide, neste cruzamento de linhas, que a si próprias se desenham, neste afã de tudo contar como se vida fosse, nesta ilusão de dominar o tempo, como se a guerra se erguesse como tempo e não fosse apenas buraco negro e a narrativa cumprisse algum desígnio que não seja o desígnio de a si própria se encenar, como sonho ou fantasmagoria, neste espaço da Tabanca, também ele, como a escrita, volúvel e volátil, neste espaço, dizia, evocar, aqui e agora, a tua presença cálida e o perfume de tua existência derramada sobre a minha, é uma outra forma de (te) dizer e contar o inarrável, certo que, como véu de maternal desvelo, vens dulcificar a vida, como se vida fosses, e então os escombros da guerra, se não habitáveis, serão, pelo menos, de arestas menos penosas.

Requeiro-te assim que fiques, Maria Adelaide, não testemunha envolvida, mas apenas presença, com um traço de ironia espelhado no rosto, cúmplice do jogo da escrita a que contrafeita te arrasto, mas fica, cobrindo com teu manto e teu silêncio, o registo das horas e o decurso da escrita, que vida se quer, na arquitectura e na encenação das personagens, que espreitam, e na figuração dos acontecimentos. Sei bem o que pensas e que teus lábios suspendem as palavras que, por enquanto, manténs reféns de teu sorriso, que outra coisa não é senão a escapatória por onde evacuas as tuas ”dores de África”, que sendo Mãe, para ti foi também madrasta.

E sei também que, no confronto de vidas contrastantes, verso e reverso da mesma pulsão e itinerário de escrita, sei, dizia, que em teu lugar, Maria Adelaide, melhor deveria erguer-se Lia, a soberaníssima Lia, a Lia das infantis brincadeiras e devaneios do Alferes ainda não alferes, nem sequer projecto, mas apenas menino de sua Mãe e que, nesse tempo de diluída memória, ela, Lia, o salvou, amoravelmente, das penas do Inferno por excomunhão patenteada de Dona Elisa, pois que, neste “Agora” da escrita, o autor (como se autor houvesse) desenha, no debruado do Tempo-Presente, o percurso da tragédia e da infâmia, e seria Lia e não tu, Maria Adelaide, apesar de teus desencontros com a vida, a escolha da tela mais adequada para configuração da escrita, como se vidas sobrepostas fossem as nossas, na matriz e no âmago: Lia, a quem África foi refúgio e expiação de sua vergonha e pecado e o Alferes, outrora menino de sua mãe, salvo por Lia das penas do Inferno, condenado, no cenário da Tabanca, à dantesca descida aos infernos. E à demonstração cínica da orquestração da guerra pelos seus próceres.

No entanto elejo-te a ti, Maria Adelaide que, embora não sendo ainda, um dia serás, mais tarde, num tempo outro, em que África será Regresso e Retorno e as ruas se engalanarão de dias festivos, pois é em ti que se projectam todas as linhas, tu que és o alvo de todas as emoções com que se vai cerzindo a narrativa. Também Lia virá, certamente, depois conhecer o fel e amargo pão e a crueldade de África colonial, nos restos do Império, a escorrer na avalanche, com o filho pela mão, fruto sagrado da sua tentação e dos amores com o Padre Francisco, que em África se finou ruído de remorso e de febres malignas.

O capitão Mascarenhas, ao fim da tarde, encerrado o bridge e o conhaque, chamara o Alferes, ao seu gabinete, que antes fora cama ampla e boudoir de Dona Rosalinda e campo de refregas outras, que não de guerra, esquecidas, no entanto, no rolar dos dias da Tabanca, pois que, neste agora dos acontecimentos, Dona Rosalinda é já passado, empresária de hotelaria em Bissau, a apascentar o afã das grandes e das pequenas coisas, desde providenciar limpezas, que casa sua seria sempre um primor, até ao “acolhimento” de suas meninas, na pensão assaz frequentada, por militares em trânsito, desde que ostentem divisas ou galões doirados, pois Dona Rosalinda não é parva nenhuma, bem sabendo ela que, na arte de tal negócio, o nível da “frequência” confere estatuto e dignidade ao “estabelecimento”, que aliás devera ser classificado de verdadeiro “serviço público” e quiçá condecorado pelo notável “esforço de guerra” que prestou ao “Corpo Expedicionário” da Província, como sanatório de almas ou como depósito de ejaculações e sofá psiquiátrico que, qual penso rápido, se não sararam, pelo menos disfarçaram (ou adiaram) muitos traumas de guerra.
Mas isso são contas de outro rosário, pois que Dona Rosalinda, de momento, para aqui não é chamada.

Afastou, por isso, o Alferes, com um vago sorriso, a lembrança dos ofegantes afrontamentos e dos tórridos assaltos nocturnos da excelsa senhora e, em passada larga, atravessou o compartimento ao encontro do capitão Mascarenhas.

Julgou o Alferes tratar-se de uma qualquer observação de serviço ou uma outra alteração na rotina do aquartelamento, ou alguma questão de intendência que o capitão Mascarenhas desejasse discutir, tarefas que decorrem directamente do seu múnus militar, como Adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria, deveres que o Alferes aliás aceitava com bonomia, pois que, liberto das funções de Comandante de Pelotão Operacional, estaria dispensado, pelo menos em teoria, das operações militares no mato, a menos que algum dos seus camaradas, por uma qualquer outra diligência ou impossibilidade física, não pudesse episodicamente comandar o respectivo Pelotão, ou o próprio capitão Mascarenhas, declinasse as suas funções, por motivos operacionais ou ausência do perímetro da quadricula territorial, sob seu comando. Então sim, o Alferes estaria investido opus legis, quer dizer, por força dos regulamentos miliares, na alta responsabilidade do comando da Companhia de Cavalaria.

É certo que acontecimentos passados, vá lá saber-se por que desleixo ou capricho da mão invisível, que traça o rumo da narrativa e lhe molda a forma, ainda não vieram à tona, tornara a vida na Tabanca, até então pachorrenta, numa electrizante tensão, que a proximidade da fronteira acentuava, mas, tanto quanto o sexto sentido do Alferes permitia detectar, não se previa nada de especialmente grave que pudesse levar o Capitão Mascarenhas a antecipar o final do jogo bridge, tanto mais que estava a ganhar para se reunir a sós com o seu Adjunto, dispensando a presença dos restantes oficiais, a saber, pois é tempo de virem a ribalta o Alferes Valentim, amigo das boas e más do horas do Alferes “herói” ocasional desta narrativa, o Alferes Barbas, fazendo jus à espessa floresta de pelos que lhe cobria o rosto, o Alferes Barros da Selva, que se distinguia pela sua obtusa teimosia e selvagem vozeirão e o Alferes Médico Cartuchadas, quem sem comando de tropas, tinha a árdua tarefa de cuidar da saúde dos vivos e encaixotar os mortos e estropiados.

Veremos as razões do capitão Mascarenhas.



6 comentários:

Teresa Almeida disse...

Um fragmento de guerra mesclado em fragmentos de amor. E a carícia da poesia a passear a pele dura e enrugada de um cenário que não deixas esquecer.
Talvez seja uma ferida na história de um país, aqui relatada na primeira pessoa.Deixas-me sempre a ideia de regresso.

Beijinho.

Pata Negra disse...

Que prosa Manuel, que prosa! Que guerra, que áfrica, que soldados, que mulheres, que vidas, que prosa! E, no entanto, apesar do contado, do que para contar e do que nunca contado será, parece até que sentimos saudades!

Um abraço e vai prosando que o contar acaba por colocar a saudade no seu lugar.

Odete Ferreira disse...

Já li outros "Fragmentos" mas não quis comentar (penso que terei feito apenas um comentário, mas não fui verificar) pois pretendia ir mais atrás para me contextualizar, apesar de se perceber o ambiente narrativo. Como ainda não me foi possível, pronuncio-me sobre a prosa em si.
Verifica-se que sabes enquadrar-te no registo, isto é, o poético quando a personagem o exige, o descritivo e o narrativo quando se trata de escrever sobre os acontecimentos e locais. Em ambos, estamos perante um primor de prosa, com uma notável precisão, propriedade e riqueza vocabulares. O discurso corre fluido e coerente, com os adequados conectores e irrepreensível pontuação.
E isto é PROSA de qualidade superior.
Bjo, amigo :)

Suzete Brainer disse...

A narrativa com "o desígnio de a si própria se encenar,
como sonho ou fantasmagoria" se revela na escrita que
flui na excelência, que o discurso assume os personagens,
com a força da voz que permeia a vida, esta muitas vezes,
palco e público com suas dores. A guerra, uma indiscutível
memória histórica de sofrimentos...

Uma leitura de qualidade literária sempre aqui!
Bj.

LuísM Castanheira disse...

pois...meu amigo, Manuel

Pouco poderei acrescentar ao comentário anterior (Odete Ferreira) com a propriedade de quem sabe do que escreve.
Com o qual, aliás, conconcordo integralmente.
Também tenho de ir à origem destes maravilhos fragmentos, o que ainda não fiz, e 'ver' como tudo começou.
O que sei é que estou perante crónicas dum tempo de guerra (essa que fizemos, ou nos fizeram, ou ambas), com uma beleza sem paralelo (e eu já li algumas, doutros escritores), que nos deixam um misto de ternura e paixão.
Gabo-te, igualmente, a riqueza das personagens.
É Obra, Amigo! E tanto gostava que publicasses em livro...
Um caloroso abraço e um bom fim-de-semana.

Agostinho disse...

Tim-tim por tim-tim o autor cria um floreado narrativo sem perder nunca o fio à meada.
E recorre desde sempre às interventivas musas para marcar tempos distintos.
Aguardemos para saber os caminhos que o autor traça na resolução da trama. Até que a última página o diga o livro vai ganhando feição. A ver vamos.
Abraço.

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