Quando, em meados dos anos oitenta, Cavaco Silva
ganhou as primeiras eleições legislativas, tive a oportunidade de publicar, num
jornal diário, (Diário de Lisboa)
entretanto desaparecido na voragem do “pensamento
único”, uma pequena crónica, intitulada “Os
cravos e as orquídeas”.
De facto, sugestionou-me na altura que, na
euforia da vitória, da varanda de um qualquer hotel, o vencedor das eleições e
sua esposa, acenando à multidão de prosélitos, ostentassem nas mãos, em lugar
de cravos vermelhos, vivos e fraternos, uma deslavada orquídea, em que a
pequena burguesia se revê, como símbolo de promoção social.
O despretensioso texto por aí deve andar,
amarelecido, misturado com outras tralhas, em qualquer estante ou gaveta, mas a
ocasião não me permite revistá-lo para convosco o partilhar, à luz da realidade
actual.
Digo-vos, porém, que de alguma forma profetizava
então o fim de um ciclo, ou se quiserem, considerava que as ondas de choque,
que o “25 de Abril” havia provocado
nas águas paradas de sociedade portuguesa, se tinham esbatido até a exaustão.
E, que daí em diante, a direita tomaria o freio nos dentes e, a toda a brida,
procuraria apagar as conquistas sociais e os próprios sinais libertadores da
generosa revolução.
É certo que o processo de recuperação
capitalista, como então se dizia, era anterior ao cavaquismo emergente. Bem se
sabe que a dita “Aliança Democrática”, de que o cavaquismo é herdeiro, em
ataque frontal ao “25 de Abril”, procurou, no princípio daquela década, uma “maioria e um presidente”, que dizer,
almejou ter as mãos livres para liquidar as conquistas da revolução.
Todos conhecemos em que circunstâncias políticas
tal desígnio foi travado, nas quais ressalta a visão patriótica do Partido
Comunista Português, que, engolindo sapos, contribui, decisivamente, para a derrota
presidencial da direita, com a eleição de Mário Soares como Presidente da República.
Momentos marcantes, sem dúvida. Foram altos e
baixos de uma corrente de luta e de resistência, que os trabalhadores se
empenharam na defesa do Futuro, que então se anunciava sob o signo da direita…
Mas tenho para mim, (como no pequeno texto
considerava), que naquele gesto simbólico de exibir orquídeas em vez de cravos,
se condensava um certo ressentimento político e que uma nova ordem social se
inaugurava, com a arrogância e a grosseria de quem sobe a pulso na vida e de
que Cavaco Silva se considerava (e considera) lídimo representante.
Como efectivamente aconteceu nos Governos
subsequentes e, já no Séc. XXI, com os governos PSD/CDS liderados por Passos
Coelho e Paulo Portas e com Cavaco Silva como Presidente da República,
artífices e cúmplices, todos eles, da deliberada política de empobrecimento do
País, que provocou danos irreparáveis na sociedade portuguesa, lançando no
desemprego e na miséria grande parte da população.
Quem não se lembra do estalar
do verniz democrático da direita, personificada pelo PSD e pelo CDS, perante a
maioria de deputados eleitos pelos partidos de esquerda e dos discursos raivosos
e revanchistas de Cavaco Silva em vista a frustrar a formação do actual Governo
e a realização de uma política alternativa, quando, no exercício de seu múnus
presidencial, era obrigado à mais escrupulosa isenção?
Uma nova política que procura tão-somente
cumprir os valores de Abril, plasmados na Constituição da República e repor a marcha
da História no seu percurso libertador. É esse o “crime” afinal, que direita portuguesa não consegue digerir.
Subiu, porém, Cavaco Silva na vida e na
contemplação de si próprio. Foi primeiro-ministro durante dez anos e Presidente da República por mais dez. E foi vê-lo
a trepar ao coqueiro e a engasgar-se com a boca atafulhada de bolo-rei…
E destruir a indústria, a agricultura, as pescas
e a produção nacional. E a alargar o deficit
alimentar do País e a dívida externa. E a congeminar o “monstro” das parcerias público-privadas.
E a hipotecar as finanças públicas e o futuro do
País, em delírio de novo-riquismo de obras públicas, num “fontismo” de pacotilha, em beneficio dos empreiteiros do regime (que
outros prosseguiram, é verdade).
E, em fundamentalismo neoliberal, a privatizar
serviços na saúde, na educação e nas empresas públicas, em nome da falácia “de menos Estado, melhor Estado”.
E a safar-se, mais tarde, ele e amigos
políticos, com as trafulhices do BPN, que os portugueses estão a pagar agora,
num buraco sem fim à vista…
Claro que a crise económica e social, de que o
País ainda não se libertou, não é com ele. Lava daí as mãos…
A seriedade é propriedade privada de sua
excelência. Ninguém mais honesto que ele! “Teriam
que nascer duas vezes”, garante-nos!…
Entretanto, escreve agora livros de ajuste de contas
com adversários políticos, deixando sub-repticiamente de fora os escândalos judiciais
e financeiros e o enriquecimento ilícito de seus “filhotes” políticos. E que
fariam corar de vergonha qualquer estadista, digno de tal nome.
Assim, por mais espuma que segregue e “raivinhas”
que alimente, ou poses de estadista em que se perfile, Cavaco Silva não será
mais que um incidente. Ou uma nota de roda pé. Ou uma legenda negra no percurso
da história pátria.
Que não desperdice, agora, sua excelência, a boa
oportunidade de estar calado e reduzir-se à sua condição de “mísero professor” (se ele o diz, quem
somos nós para duvidar?). Seria o mínimo exigível.
Mas não, sua excelência teima. Porém, os
portugueses prescindem de bom grado de seus méritos e experiência. E, tendo mais
em que pensar, interrogam-se, encolhendo os ombros “até quando, Cavaco Silva, continuará a abusar da nossa paciência”.
Manuel Veiga
26/02/2017