quinta-feira, julho 21, 2016

FRAGMENTOS XV

 
Não há, tempo, pois, nestas “estórias”. Nem muito menos tempo contínuo, liso de contornos. Se, porventura, tempo existe será apenas poliedro de múltiplos efeitos, onde a realidade se veste e transveste conforme a feição ou capricho da Memória. As comportas abrem-se então e solta-se a lava, arrastando na passagem lugares, paisagens, momentos, ausências, lembranças ou dores até fixar-se, num clarão inesperado, ou centelha, que arrebata por dentro e volta a superfície, decantada, a marcar a fluência do devir. O tempo é uma então uma metáfora. Apenas.
 
E, se Autor houvera e a narrativa em que, dizendo de outras coisas, te digo, Maria Adelaide, numa recorrência de águas profundas que atrai todos os afluentes, se houvera autor, dizia, a Memória seria então dócil e a palavra se afirmaria soberana e não apenas escora, em que a narrativa se embala, como se capricho de ave fora, ensaiando o voo, desfiando nossas vidas, na precariedade de outros rostos, quando bem sabemos dos sulcos.
 
Regressemos pois à Tabanca. Fixemo-nos no Alferes em suas deambulações por território desbravado, que é como quem diz, pelo corpo marcado e a solicitude de Dona Rosalinda, que aqui há-de emergir como sibila de um percurso de sabedoria, como se fora a luz limpa, que desfaz a névoa e guia nos meandros da alma e no conhecimento dos homens.
 
"Come, meu filho, come a canja. Outra tigela? Aposto que não comes uma canja assim há muito tempo. Se é que alguma vez comeste. Tua mãe faz canjinha para ti? Claro, claro meu filho, que as mães fazem sempre canja saborosa para seus meninos. Eu que faço canja tão boa... e aquele cabrão nem, ao menos, um filho me fez. Uma maldição, desde que aqui chegou o bastardo do Gaspar, por conta da C.G., que a mim nunca enganou, não só pelo ar de rufia de que estava farta de conhecer no bar do Cais Sodré antes do meu Armando me fazer largar tudo, a venda do peixe, as minhas amigas do Bar e a família, mãe e irmãs que de pai nunca soube, para correr atrás dele, atrás de mil promessas, como uma fêmea com cio e logo eu fartinha de conhecer vadios. Mas que queres tu, o amor é uma porra e, quando bate forte, não há quem lhe acuda e cada um é para o que foi feito e eu nasci para acabar meus dias entre pretos.
 
Ao princípio não foi mau. Festa rija de casamento no Hotel Central, em Bissau, mandou fazer esta vivenda de pedra e cal, respeitava-me, nunca me ouviu para coisa nenhuma, claro, mas não me faltava com nada, dois ou três pretos ao meu serviço cozinhavam e faziam a lida da casa. Se não era uma rainha tinha tudo o que precisava e até, às escondidas dele podia enviar dinheiro para a família.
 
O negócio da mancarra dava, naquela altura. A C.G. era dona disto tudo em toda a Província, arroz, mancarra, banco, nada mexia sem a autorização dos seus capangas, acabara por aumentar o preço do amendoim e, por mais uns “pesos”, uma ninharia, os pretos passaram a cultivar mais amendoim que aqui recebíamos e entregávamos nos armazéns, em Bissau. Assim, durante anos. Depois esta ruína da guerra, que, como doença maligna, se foi infiltrando pouco a pouco. E, se como não bastasse a guerra, o rufia do Gaspar chegou, quis em nome da C.G comprar os armazéns e o negócio. Não deixei. Foi a primeira vez que me bateu, aquele sacana”.
 
O Alferes que até então se limitava a apascentar as emoções dispersas, num torpor que o tolhia, preso na memória de outras cautelas e outros caldos de galinha, rompeu o silêncio íntimo e indagou num estremecimento: “E batia-te porquê? Que lhe fizeste?”
 
“Como tu és lindo, meu filho, com teu interesse por esta velha carcaça a gemer suas dores e amargura sobre teu rosto, ainda menino, quase imberbe, e que tão a sério se leva na sua pose de homem adulto e autoridade militar. Meu filho, os homens não precisam de razões para bater em mulheres. Quem lhes vai à mão, mais a mais aqui neste cu do Mundo? Os homens batem nas mulheres, por que lhes apetece, porque estão bêbados, por hábito, porque estão para ali virados, batem por tudo e por nada, mas batem, sobretudo, por que têm medo. Medo, medo, sim, medo maluco de ficarem impotentes, medo deles próprios, medo da morte. O meu Armando bateu-me, pela primeira vez quando chegou o rufia do Gaspar e quis ficar com a venda em nome da C.G. de Bissau. Disse-lhes a minha parte não venderia, era o que faltava. Com o rufia do Gaspar a acicatar, “não tens mão na mulher, és um banana, que em “casa com galo não manda galinha” e o meu Armando aos gritos, primeiro vieram os insultos, “sua esta, sua aquela”, não calei, que isto de uma mulher como eu aguentar calada dói e custa, barafustei também e foi a primeira chapada e os pontapés a seguir e a ameaça do cinto depois, e eu teimar “que não assinaria papel nenhum” tudo na presença do Gaspar, ali sentado naquele cadeirão, com um copo de whisky na mão, a cuspir um sorriso velhaco, como uma cobra-cascavel. Com meu corpinho amassado de tanta porrada e a sangrar da boca, por fim lá se levantou, passou o braço pelos ombros do meu Armando, segredou alguma e saíram os dois, abraçados um ao outro, cada um com sua garrafa de whisky e foram meter-se no armazém da mancarra a beber e a gargalhar com um bando de putos pretos e umas “bajudas”, umas lambisgóias que nem seios têm e que, por umas bugigangas ou a troco de uns pesos, fazem o que, nem muitas mulheres adultas são capazes de imaginar.
 
Sabes porque os pretos chamam “kamenino” ao Gaspar? Porque gosta de garotinhos que a troco de umas guloseimas lhe frequentam a casa e lhe apagam os ardores. Passa a vida a assediar os pretitos “anda cá menino” e ninguém se importa, nem a pretalhada sem lei, nem roque, uns selvagens ao sabor da natureza, nem as autoridades. Apanhei muita porrada por querer por cobro a esta pouca vergonha, o meu Armando acabou por apanhar-lhe o gosto e seguir as passadas do rufia do Gaspar. Quem me valeu muitas vezes foi o senhor Gomes, daquela venda aqui em frente, o primeiro branco chegado a esta terra, que os pretos respeitam e as autoridades em Bissau, antes do estupor desta guerra, escutavam.”
 
O cérebro do Alferes era fornalha, o sangue a latejar nas têmporas, a palavra presa no interior da indignação, apenas o torrencial discurso da mulher ganhava asas como via-sacra percorrida de vidas sem retorno, o nojo, a banalidade do mal em carne vida, assim exposto, em monocórdica e neutra palavra, como fel seco, que não adianta revolver e do qual apenas se guarda o estertor e que agora era subterrânea água e emergir naquela ternura solta, como redenção espúria e migalhas de uma vida inesperada.
 
O Alferes era então um melro esquivo a povoar-lhe a mente e os dedos da mãe alisando os caracóis e o beijo a beber as gotículas que deslizam na sua testa, inesperado orvalho em pétalas de açucena e a familiar cantilena da água em sobressalto. E agora a mão a cobrir-lhe os olhos e a esconder do menino a dor e os gritos de aflição de Rosalinda, “acudam-me, quem me acode, que o meu homem mata-me...” e as dores partilhadas de mulheres de negro vestidas em luto permanente, e a mãe a larga-lo e correr para aflição “ó homem, ó Xico a bater dessa forma desalmada na tua mulher, não tens vergonha!...” e a intrometer-se e a procurar segurar-lhe o braço e o empurrão do homem que a fez tombar ”meta-se na sua vida, que aqui não é chamada” e o choro agora do menino a ajudar a mãe a erguer-se e mais pessoas a acorrerem aos gritos e a travar o Xico, cinco filhos pequenos uma parelha de jericos umas jeiras de terra arrendadas nas ladeiras para semear centeio que mal chegava ao Natal – puta de vida!
 
E também a náusea agora a apanhar por dentro o Alferes e os espasmos no estomago e o vómito incontido que se solta como purga e a evocação de Lia de sua meninice e suas brincadeiras infantis e seus impúberes seios abocanhados, abastardados, emporcalhados pelo falsete do riso e pela baba e a peçonha e o gozo alarve e malsão do “kamenino” e o verdete do ódio a estoirar no peito e o asco e o grito rouco, espontâneo como trovão justiceiro, impotente em sua angústia – “filho de uma grande p. que merecia ser castrado!”
 
E a maternal devoção de Dona Ermelinda a desaguar em seus olhos húmidos e a beijar-lhe a mão “como és lindo, meu filho!”...
 
O toque de clarim acordou o Alferes de seu torpor. Ajustou a farda e os cabelos e saiu apressado ao encontro dos seus deveres militares. O “Assobio”, graduado em ordenança do comando, acompanhado pelo “cabo cozinheiro” aproximava-se de tabuleiro em riste para prova do rancho.
 
Em devida forma, os soldados alinhados aguardavam revista para entrarem, no refeitório, para a última refeição do dia.
 
 
Manuel Veiga

2 comentários:

Suzete Brainer disse...

"O tempo é uma então metáfora."
Sim, acontecendo na urgência do sentir
das palavras que localizam os seus
significados mais profundos.

"A memória seria então dócil e a palavra se afirmaria soberana."
As camadas da memória se propagam no voo em que as palavras
existem como narração de uma história que se faz
dona do seu percurso (narrativo).

Neste percurso narrativo, as palavras trazem as feridas de Ser
mulher (Dona Rosalinda) no universo de homens "machos" que
escravizam e violentam o corpo e a alma feminina.
Neste universo também existem homens (Alferes) que entendem
a igualdade no respeito e nos gestos de carinho humanos.

Para mim, é um dos mais belos fragmentos escritos por ti,
devido ao conteúdo sublime e sensível da emoção que
inscrita nas palavras, como um rio muito transparente
de uma beleza humana!...
Parabéns, Manuel!!

Agostinho disse...

Os anjos e demônios que nos povoam a memória são/foram a prova mil vezes repetida da nossa condição de semelhança divina?!

Belíssimo trecho.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...