sábado, outubro 31, 2015

FRAGMENTOS XIII - Dona Rosalinda em cena...


- “Entre, senhor oficial. O senhor não precisa pedir licença – esta casa é sua!...” – persistia, a latejar no cérebro, a voz da mulher.

Corpo e mente do Alferes eram um sismógrafo vibrátil. Qualquer leve perturbação do meio, estremecia nos nervos tensos, aguçados pela tempestade e pelos acontecimentos. E a voz feminina, afável e acolhedora, a ecoar dentro: ... “não precisa de pedir licença!... não precisa de pedir licença ... não precisa....”.

Sem registo de qualquer formalidade, ou pedido de licença o Alferes, dulcificando a alma, deixou-se então envolver pelo poema de Manuel Bandeira que, como uma cantilena, nos últimos tempos, o povoava e que, inesperadamente irrompeu, desperto, na voz de acolhimento de D. Rosalinda.

“Irene preta.
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença...”

Mas não, não era Irene!... Nem uma subida aos Céus, no corpo martirizado do Alferes. Mas bem poderia ser, sem dúvida, o humaníssimo bálsamo da bondade de Irene Preta, que o poeta celebra.

D. Rosalinda ocupava a cena, vinda do interior da casa. Lançou sobre o febril Alferes, transido de emoções, um olhar penetrante: “ Tão novinho e desamparado, o senhor Alferes!... Mais parece um pintainho fora da asa!...”. E maternal: “No entanto, soube portar-se como um homenzinho com farda!...”

Seguindo seu impulso, sem dar tempo para o Alferes balbuciar palavra ou movimento, D. Rosalinda segurou-lhe, com suavidade a mão, conduzindo-o para o interior da vivenda: “Venha, não resista! Deixe-me tratar de si...”.

Alagado pela chuva, o camuflado colocado à pele, uma massa inorgânica, acastanhada, de poeira e chuva, grudada ao corpo, o Alferes parecia ter saído “coração das trevas”, num “apocalipse” de tempestades e emoções estremes, que envolviam a Tabanca e estoiravam no cérebro escaldante - o Alferes era vibração febril e apenas o olhar felino e alucinado captava, sem reacção, os movimentos e reflexos circundantes...

“Beba um gole! Vai fazer-lhe bem”... – E D. Rosalinda subiu aos lábios ressequidos do Alferes o copo de whisky que segurava, forçando o gole, que extravasou para o queixo quase imberbe, ficando a escorrer algumas gotas do doirado líquido, que numa carícia demorada a mulher recolheu nos dedos e os lábios femininos sorveram, num arrepio de sensualidade.

“Venha, venha...” - insistia D. Rosalinda, atravessando o salão, que mais tarde, depois das devidas adaptações, haveria de ser simultaneamente, conforme as ocasiões, “messe dos oficiais” e “sala de operações” do comando da Companhia, desdobrados e exibidos que fossem os mapas militares, dissimulados nas paredes por grossos reposteiros. Mas então, não. O salão, em sua inabitada utilidade e solidão, era apenas território deserto, espaço de passagem, que D. Rosalinda percorria agora, numa secreta ansiedade, com o Alferes pela mão.

Ultrapassado o salão, ao fundo, a porta para a ampla e vistosa casa de banho para onde D. Rosalinda arrastou o Alferes que, extenuado, “estava por tudo”, pois nada seria pior que aquela torpeza mole, que paralisava músculos e cérebro. A mulher abriu as torneiras e, enquanto a água tépida escorria para a banheira, soltou o fecho do camuflado, despiu-lhe o casacão e camiseta colada ao corpo, negra de poeiras e suor. E, depois, lentamente, como predadora faminta que antecipa a fome saciada, despe-o das calças e restante roupa interior.

O corpo do Alferes exalava um odor acre, que se entranhava nas narinas ofegantes da mulher, dilatadas pelo cio que emergia de longas noites solitárias e de uma longuíssima espera. E, segura que a presa não mais lhe iria escapar, a mulher beijava o peito, as costas e as coxas do rapaz e, num murmúrio apenas sibilado, suspirava, por entre os beijos, apertando-o nos braços: “O meu menino, o meu menino, tão bonito e frágil. E tão cansado!”... Maternal e carente, meteu o rapaz na banheira - lavou-o, enxaguou-o, secou-o com macios toalhões, derramou sobre o seu corpo perfumes e essências e lambazou-o com beijos, milímetro a milímetro da pele.

O Alferes aceitava as carícias, quase como uma missão militar, debatendo-se entre a pulsão da carne jovem e o sentimento, não de culpa, que a Lia, páginas atrás, a sereníssima e imperial Lia, companheira de seu jogos infantis, lhe ensinou a superar, mas um sentimento, misto de vergonha e repulsa, por se entregar aos apetites de uma mulher que tinha mais que o dobro da sua idade, pois bem sabia que, mal fosse conhecida esta sua “façanha erótica” seria inevitavelmente pasto de ironias e graçolas do seu amigo Valentim e dos restantes oficiais, sargentos e praças, não apenas da Companhia, mas de todo o Batalhão, quando não mesmo de toda a guarnição militar da Província.

Talvez, por isso, adivinhando as inibições e o embaraço do rapaz, D. Rosalinda assumiu por completo o comando das operações e a encenação talentosa de todo o cerimonial erótico, numa sequência de ritos e actos sábios que fizeram explodir o Alferes num orgasmo colossal, que o transportou ao mundo glorioso dos bem-aventurados.

Lá fora a tempestade amainava.  E o Alferes dormia, como um anjo, pagão e puro, no leito amantíssimo de D. Rosalinda, envolto em seus braços benfazejos. E sonhava... Entretanto, a poesia de Manuel Bandeira, que D. Rosalinda jamais lera ou soubera, perfumava o ar quente da tarde, como se milagre fora...

“- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
Que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores…
Fazia infinitos.
Diz: - não me conheces?
- Não conheço não...”


segunda-feira, outubro 26, 2015

Acerca de uma Tertúlia


Vieram afluentes e diversos. De desassossegos apenas
Cobertos. E pétalas de bem-querer
De mão em mão. Como se poemas desfolhados
Fossem. A dulcificar a noite
E amaciar a escuridão...  

Os deuses, lá no alto
Sorriam irónicos e benignos!

E os poetas escavavam então porfiados
A palavra Paz e seus sentidos. Como quem busca
A Semente ou a Raiz. Ou talvez
A emergência de um novo Graal.

Crianças inebriadas
A decifrar a gramática do Mundo.
E suas dores fecundas.

(Lá fora, um poema aberto, que germina
No rumor da História. Declinado
No perplexo rosto de nossos dias...)

 Manuel Veiga






sexta-feira, outubro 23, 2015

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXXIV - o Grande Indigitador...


Augúrios novos parecem bafejar os céus de Babilónia. Mais cautos, os babilónicos compreendem a causa de seus males – e decidem afastar Hammurabi, o legislador...

Hannibal, o Grande Indigitador, qual cascavel a quem pisam o rabo, cospe peçonha e estende o braço – "Hammurabi, o legislador, é grande e poderoso! Protegido por mim e pelo deus Mercado! Quem assim não for será um pária e expulso da cidade..."

A Praça abana as orelhas e amplia eco...
.....................................................

E um velho camponês, conhecedor de cobras e outros répteis: “As serpentes matam-se no ovo!...”

E exorta: “Babilónicos, quem poupa o inimigo em suas mãos morre – cerrem fileiras e subam ao cume!...”



terça-feira, outubro 20, 2015

OS SAPOS - Manuel Bandeira

Os Sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— “Meu pai foi à guerra!”
— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — “Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…”

Manuel Bandeira – Poeta Brasileiro - 1886/1968

Com os escritores João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector e Joaquim Nabuco, entre outros, Manuel Bandeira representa o melhor da moderna produção literária brasileira.

sábado, outubro 17, 2015

PAISAGEM VERDE-RUBRA...


De amor e guerra são as palavras que soltamos
Como quem o húmus afeiçoa.
Bem sabendo ser escassa a terra arável
E que em inóspitos fraguedos semeamos...

Habita-nos porém esta miragem
De exceder as circunstâncias.
E em cada gesto pressentir o ressumar
Das colheitas no vermelho das espigas
Em maduros Maios do futuro...

E os punhos que agora se levantam
Serão barcos e serão hinos.
E o rosto dos homens paisagem rubra. E verde.
Que ferve. Na força em que nos damos...

Manuel Veiga



quarta-feira, outubro 14, 2015

GRANÍTICA ESPERANÇA...


Colapsam as palavras. E despenham-se na voragem
Das paisagens geladas. Lonjuras que apenas os ventos
Ousam. Pressente-se o grito perdido das fragas
Em simulacro de dor.

Vã a tentativa para além do azul coalhado
E das farripas de bruma que incendeiam os vales
Como bocas sinuosas de dragões em danças guerreiras.
Ou monges brancos em penitências aladas no milagre
De todas as lembranças...

Fantasmagorias soltas debruçadas sobre as casas
Perdidas. Solidão de cabras balindo a urze
E as magras tetas. Ventres que se abrem nas encostas
Em presépios de abandono... Lá no alto a íngreme
Penitência das dores e de todas as promessas.

(Pagãos que somos!...)

Guardamos o inesperado. E a rocha parideira.
E o teixo. E colhemos (no restrito núcleo de afectos) o gosto
Do vinho que bebemos. Confortados. E a água
Que calamos. E agitação febril dos olhos.
E dos sonhos.

Imensos na granítica esperança. Tatuada no rosto
Dos homens. Verdadeiros...

Manuel Veiga


sábado, outubro 10, 2015

PARA ALÉM DA DOR, O BOJADOR...


No gume dos dias peregrinos
Arqueja a esperança no peito dos homens.
Os velhos percorrem a cinza e sopram a centelha
No delírio inflamado de um voo perdido.

E nas entranhas das aves
Decifram os sinais como pitonisas de olhos esventrados
E dedos imensos que se perdem como barcos
No horizonte do sonho.

E com as crianças nos joelhos
Declinam um abecedário
De promessas como pomar
De frutos maduros e suspensos
Ao alcance das bocas.

E inventam – os velhos – um tempo novo.
E faluas. E das águas do Tejo erguem marinheiros
E poetas. E as praças agora povoadas
Incendeiam o alvoroço da cidade:
 – além da dor, o Bojador é dobrado!

Lá longe, o dragão espuma raiva...

Manuel Veiga


quarta-feira, outubro 07, 2015

FRAGMENTOS XII - "Entre, Senhor Alferes, esta casa é sua..."

A tarde abafava. Os corpos eram exaustos. A coluna militar, à chegada, fora envolvida, nos gritos da criançada, que suspendeu o jogo com uma bola de trapos (as brincadeiras das crianças pobres são as mesmas em toda a parte) no largo da Tabanca, que tanto servia como campo de brincadeiras, como de “parada” militar. A ladear o espaço, descaindo para o lado da fronteira, um frondoso embondeiro, rodeado, por bancos toscos de pedra, servia, com sua sombra, de plateau, nas decisões colectivas e ócios (permanentes) dos homens grandes da Tabanca. Esguia uma cana de bambu, mal ultrapassando a copa do embondeiro, arvorando a bandeira nacional, em posição invertida, como o Alferes nunca imaginara e era antevisão, décadas depois, de umas presidenciais comemorações da implantação da República, nos Paços do Concelho de Lisboa e do zelo do futuro cavaquismo pelos símbolos e valores pátrios e também prenúncio eloquente de nova(s) decadência(s), em que o “cravo e canela” se devolve “em apagada e vil tristeza”, já não cinza de míticos impérios, mas antes da “Europa connosco” e seus desenvolvimentos futuros e da Ilusão europeia que para “Sonho” sempre lhe faltou o “o Azul e a Asa”.

Electrizante a atmosfera. O ar denso oprimia o peito e mal deixava respirar. Apeados das viaturas, os homens, em formação militar, aguardavam, enquadrados pelos respectivos comandantes de secção. A uns metros de distância, alguns militares da pequena guarnição, desgrenhados, seminus ou de camisa aberta, barbudos e sebentos, olhavam os camaradas de armas recém-chegados, briosamente fardados em fato de combate e em impecável formação, como extraterrestres. Do interior da Tabanca, pachorrento, de alpergatas nos pés e tronco nu, cabeça descoberta e cabelos raros, com uma sedentária barriga, qual barril de cerveja pronto a explodir, saguim empoleirado no ombro, surgiu, finalmente, o esperado sargento Fernandes, comandante da secção de militares, a quem a honra da Nação e os desígnios do Império fora confiada naquelas paragens e que, agora, o Alferes aguardava, não para cerimónia formal de transmissão de poderes, que as circunstâncias dispensavam, mas para prestar os esclarecimentos necessários em vista à instalação dos camaradas de armas acabados de chegar.

Próximo da exaustão, pela viagem e pela electricidade estática, que provinda da atmosfera, empapava o solo e se infiltrava nos poros, com um peso obsessivo nos órgãos vitais, pressentia-se a ansiedade pelotão em ver terminada a formatura. No entanto, bem sabiam os militares sob seu comando, que o Alferes, cúmplice e amigo em horas de lazer e descontracção, não tolerava “baldas” em serviço, nem desleixos. Assim, o rosto dos homens em formatura animou-se, num sorriso aberto, face à “aparição” clownesca do sargento Fernandes, antecipando o gozo pela “pissalhada” que o Alferes lhe tinha certamente reservado e que se adivinhava em explosão, como fulminante tempestade.

De facto, o Alferes, com o desagrado estampado no rosto, coçava “as partes baixas”, como em ocasiões de maior tensão sempre acontecia, num tique nervoso que ganhava foros de hábito e se prestava a desbragados dichotes na caserna, numa camaradagem impoluta entre homens acorrentados ao mesmo destino. Sabia de antemão o Alferes que o desenrolar da cena, em público, à vista de toda a Tabanca, poderia ser fatal para a consideração em que era tido pelos homens que comandava – bastaria, por exemplo, que o Sargento “lateiro”, homem com largos anos de tarimba militar, tivesse recalcitrado, face às circunstâncias públicas da admoestação ou ao exagero do tom e da forma em que foi admoestado. Porém, mais que a exigível ponderação das circunstâncias, na voz do Alferes sou mais alto a sua natureza, ou seja, sua atávica repulsa contra a autocomiseração e os comportamentos moles e atitudes desleixadas, pois que aprendera, com o leite materno, que “na vida se pode perder tudo, mas nunca se pode perder a dignidade”, postulado ético que lhe servia de imperativo categórico a modelar os comportamentos humanos, quer individuais, quer colectivos.   

Assim, a voz do Alferes soou, com o vigor de uma chibata, face a mão descuidada que o Sargento lhe estendia, ignorando a devida continência militar: “Nosso Sargento, que rebaldaria é esta? O que o leva a supor que dispenso a sua apresentação formal? Mas nessa “figurinha” carnavalesca, nem pensar! Tem dez minutos para, devidamente fardados, se apresentar com os seus homens em parada...” E dirigindo-se ao furriel mais antigo, comandante da 1ª Secção: ”Furriel Dias, mande os soldados ensarilhar armas e aguardarem em formatura...”

Abafava-se. Mas a reprimenda parece ter gelado os ares. E próprio o sorriso cúmplice dos militares se perdeu, na ansiedade dos corpos suados, que exigiam a libertação da asfixiante farda de combate. O espaço, deserto agora da criançada e com militares da guarnição correndo atrás do Sargento rumo à caserna, foi pouco a pouco rodeado pela população, que seguia o aparato militar, com estranheza e viva curiosidade.

Do solo, levantava-se uma poeira quente, insuflada por insistentes redemoinhos, que em turbilhão, subiam aos céus carregados de negro e electricidade, quais tufos e cornucópias desgrenhadas em alvoroço telúrico.

O alvo de todos os olhares, era agora o Alferes. No centro da parada, em rigorosa posição de sentido, recebia a continência do Sargento Fernandes e dos militares guarnição que por ele desfilaram em passo de “ordem unida” e se foram colocar, em formação, no início da coluna militar recém-chegada, como lhe fora determinado. À voz de comando do Alferes, toda a coluna reunida num só corpo militar, desfilou em, em “ordem unida”, até ao do embondeiro dos homens grandes da Tabanca e à arvorada bandeira nacional. Ordenou o Alferes, perante a sua estranheza do Sargento, que arriasse a bandeira nacional em vista a ser hasteada, devidamente colocada no improvisado mastro. E, num aparte sibilado, apenas pelos dois audível: “Se o nosso Sargento não sabe ou esqueceu qual a posição correcta da bandeira no mastro, chamo um dos meus soldados mais básicos!...”.

Visivelmente constrangido, mas sem esboçar qualquer palavra ou gesto de contrariedade, fixou o Sargento novamente bandeira na extremidade da cana, agora, sim devidamente, com o pano verde junto da haste e o vermelho ondulante, ao vento...

Os homens grandes, primeiro indiferentes, olhavam intrigados. Mais distantes, à entrada do pequeno edifício alfandegário, que com a guerra passou servia de posto da Pide, o chefe Antunes e o “Cámenino” calaram o miserável sorriso de hienas, à voz de comando do Alferes e os militares perfilados, apresentando armas em rigorosa formatura e bandeira nacional subindo, na medida em que a cana bambu se desdobrava, lentamente, nas mãos do Sargento até ficar fixa no improvisado suporte, a dardejar sobre o embondeiro.

“Mas que fervor patriótico, Manuel!... Admirável este teu eclectismo. Depois da recaída neo-realista, páginas atrás, descai agora o teu pé literário para a chinela do romantismo de pendor nacionalista. Com uns acordes de fado e teríamos então um filme de propaganda nacionalista, digno do cineasta maior do regime, chamado António Lopes Ribeiro. Ou, sabe-se lá – acentuas a ironia e o sorriso – se tua empolgante descrição não daria uma crónica actualizada do próprio António Ferro!...”

O que aí vai, Maria Adelaide. Cada vez mais acutilante esta queda para comigo implicares e que tão bem cultivas, mas que a mim não engana, pois esse teu jeito, que terás que reconhecer, por vezes, um pouco excessivo, outra coisa não é, senão uma forma de chamares a atenção, como criança o regaço materno, requerendo, uma carícia ou um beijo, que noutros tempos seria acendalha do fogo que nos consumia que agora é cinza que nos aquece. De resto, como gazela ciosa, pressentes “competição” feminina e advinhas que, para lá do palco e dos cenários em que nos dissimulamos e mesmo para além do trama em que o texto se engendra, se perfila Dona Rosalinda a reivindicar os seus direitos na narrativa. E isso, mais que a inquietação com meu destino literário, provoca-te ansiedade e espicaça a tua curiosidade feminina e assim perdes de vista o que verdadeiramente está presente na briosa performance militar do Alferes. Porém, se te desses ao trabalho de escavar “o ruído da escrita”, bem se sabendo que “o autor não existe” e, assim, também não o sujeito de um qualquer discurso moral, em que te possas apoiar e estivesse um pouco mais atenta à linguagem das coisas e ao sentido dos comportamentos, compreenderias então que o corpo físico da escrita, em que o Alferes se desenha, no espaço mítico da Tabanca, é a enunciação de um “discurso de poder”, cujo sentido faz explodir o mero jogo das aparências. O que pretendo sublinhar é que do “outro lado” do Alferes, tal como é apresentado, permanece uma realidade outra, possibilidade apenas, que fica oculta no limbo da escrita e, no limite de um frágil acaso, estabelece a diferenciação entre o “herói” e a vítima. Qual deles te mereceria mais cuidado?

Mas bem intuiu o Alferes a subtil diferença e as ocultas “determinações” da sua acção, ou a fundas razões das suas escolhas que, podendo a Tabanca marcá-lo com o anátema da “negatividade” o afirmou como “fiat lux” promissor na saga em que se joga seu destino e que outra coisa não é senão a clarividência de ter compreendido, antes de verdadeiramente o saber, que “não existe poder, sem exercício do poder” e que todo o poder, seja qual for a sua natureza, sobretudo o poder militar, se reveste de sinais, ritos e símbolos, numa liturgia cujo exercício é a marca visível de “autoridade” e de domínio. Porque, minha querida, as relações sociais, sejam elas expressão do microcosmos da Tabanca ou do vasto Mundo, são relações de poder, em que uns quantos (poucos) o exercem e os restantes (muitos) são sujeitos e que alguns, bem conhecendo a tramóia em que o(s) poder(es) se desenrola(m), lhe(s) resistem e, ao resistir-lhes, os liames de um poder-outro vão tecendo.  De que serviriam ao Alferes os seus doirados galões de oficial do Exército se não fora a sabedoria e a oportunidade de colocar “em sentido”, no sentido literal do termo, o Sargento Fernandes em manifesta abjuração, pelo desleixo, da ideologia militar de que era enformado? E sem resistência, obviamente, que a ideologia militar é “totalitária”, quer dizer, não admite, sobretudo, em teatro de guerra, linhas de transigência, nem fissuras de dissidência. Ao “vigiar e punir” um comportamento desviante, o Alferes redimiu o poder militar de que provisoriamente era investido no escalão mais elevado e, por momentos, precários que fossem, foi sumo-sacerdote da sua ideologia. Ámen!...

Finalmente a ordem para destroçar. Os militares acossados pela ventania, cada vez mais forte, corriam dos veículos militares com as bagagens para o velho armazém de mancarra, agora deserto, que lhe iria servir de abrigo e dormitório. Bruscamente, a escuridão total, absurda, apenas cortada pelos relâmpagos, luminosos, brutais, insistentes, rasgando os céus, de alto a baixo, ou nascendo debaixo dos pés, como se todas as portas do inferno fossem abertas e o apagamento da Tabanca e da floresta num silêncio opressivo, rasgado por um urro da natureza, um trovão medonho, provindo dos confins do Universo, como se toda Terra tremesse e abrisse comportas do Céu em cordas de água, que fustigavam homens, árvores, animais, telhados ou palhotas de mistura com os detritos que voavam, como fantasmas, impulsionados pela ciclónica ventania. O Alferes, que aguardou, firme, que o último homem estivesse a resguardo, de um momento para o outro, viu-se solitário no espaço da parada, com a farda encharcada e escorrendo água, paralisado e absorto, como que fulminado pela grandeza belo-horrível do espectáculo a que assistia ao vivo. Acordou do torpor com ruido uma folha de zinco a bater a seus pés e que vinda pelos ares quase lhe ceifava o pescoço e, então, correu, desalmado, para o alpendre mais próximo, dominando a ansiedade e a sacudir a água.

- “Entre, senhor oficial. O senhor não precisa pedir licença – esta casa é sua!...” – murmurou uma voz de mulher do interior da casa.



segunda-feira, outubro 05, 2015

"Que Farei com Esta Espada?..."



À Superior Consideração de:

Senhor António Costa
Senhora Catarina Martins
Senhor Jerónimo de Sousa

“Todo o começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce:
“Que farei eu com esta espada?”

Ergueste-a, e fez-se!”         

Fernando Pessoa, Contabilista





Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...