Vem
Maria Adelaide e fica assim, em teu jeito calmo, com as mãos deslaçadas no
regaço e uma finíssima ironia a sorrir nos lábios, bem sabendo ambos que as
minhas “estórias” são apenas pretexto e que nada do que possa dizer-te sobre África
irá alterar o fio invisível da narrativa maior, onde se despenham os caminhos
mais espúrios, as emoções mais inesperadas e onde afluem os dias de ontem e as
esquinas da vida que ainda faltam, que ambos teimaremos agora como moinho que mói
a pedra, onde dantes era colheita festiva. Mas que posso fazer? Assumi este
destino de escrever, outra forma de viver, porventura, (acentua-se agora o teu
sorriso irónico) e retorno a África na confrontação de nossas vidas, que foram
escritas num papiro de letras sobrepostas, em que o sentido de umas e a
inverosimilhança de outras obscurecem a semântica elementar em que são
forjadas.
Evoco-te,
pois, artificiosamente, como dantes, num rasgo de retórica, os autores evocavam
os príncipes, arrastando-os para um cenário de estranheza e um discurso inesperado,
que se não convencia pelo menos provocava. Para glória do príncipe, está bom de
ver!...
Ensaiemos,
então a Farsa. Como se o auto das Barcas fora. No Céu ou no Inferno, em que
barca entraremos? Façam as apostas, leitores!
Iluminemos o palco. E entrem os personagens...
Dona
Rosalinda no centro.
“Sou filha da miséria e da noite. Meu corpo
agora fanado foi em tempo gracioso. Onde isso já vai, meu Deus! E agora este
alferes imberbe na minha cama – que idade tens? 22, 23 anos? Tão novinho e
tenro atirado para este buraco? Cuida-te, rapaz e deixa de pretender a minha
vida! Que adianta? Passou, está passada! E não me envergonho dela, sabes! De manhã
o cesto na cabeça, calçada acima, rua abaixo, pregoando o peixe fresco. À noite
Marinheiros das sete partidas e línguas estranhas, a troco de umas notas. Vendia
o corpo, sim. Mas não me envergonho, não. Tirei a mãe da doença e os irmãos da
fome. Até cantava o fado e dizem que bem. Confesso que cheguei a sonhar com uma
carreira. Não fora...
Não fora – que raio de coisa! – vou contar-te,
pronto. Não fora aquele rapagão morenaço, que uma noite apareceu no Bar, a incendiar
o ambiente com notas de mil e o corpo das meninas. Então o meu nem se fala! Ardia
quando me pegou num tango. Bruto como as casas com os copos, mas meigo e doce
quando bem queria...
Não lhe soube ou não quis resistir-lhe. E
aqui estou. Vim atrás de um sonho e de promessas mil. Não me queixo. A vida é
madrasta, mas vivi o que tinha a viver. Noutros tempos fazíamos bom dinheiro no
negócio com os pretos. Vinham até do Senegal a comprar panos e óleo. E comprávamos,
por tuta e meia a mancarra que vendíamos depois, em Bissau, à Casa G. Por bom
preço, nessa altura. O dinheiro dava até para enviar à família. Às escondidas,
que não era senhora de nada! Maldito! Agora esta guerra! Não lamento as febres
que o mandaram pro Diabo. Mas esta guerra que me está a dar cabo da vida. Vendo
bem, lamento também a vinda da tropa que nenhum mal vai curar, mas apenas
agravar. Estávamos tão bem antes, cada um sabia o lugar que ocupava! Preto era
preto e o branco, branco. Agora esta barafunda que ninguém se entende.
Mas que raio de coisa! Por que razão me
estou a abrir contigo? Fora! Põe-me esse cú fora da cama. Uma vez sem exemplo. Xó!...”
Uma
recaída neo-realista, Manuel? Tens que cuidar melhor o estilo”, soltas numa
gargalhada nervosa.
(Agora, Maria Adelaide, a tua ironia ecoa como uma ferida
aberta, de que nunca te deste conta. Apesar de à flor da pele. Bem palpável!...)
8 comentários:
Interregno para coisas de ontem?
(que duram até hoje)
Excelente. Surpreendente. Temos livro.
Um texto soberbo.
Parabéns pela excelência das suas palavras.
Tenha um bom resto de semana.
Abraço.
Onde estava esta passagem de histórias da Bolanha e outras Áfricas.
Fantástico texto. Uma recaída irreversível. Espero.
Um abraço fraterno
"Assumi este destino de escrever;
outra forma de viver"
Pois é poeta... Esta arte é uma maneira
de ser, ao toque da emoção, da palavra viva
que emana e aciona a emoção do leitor
num sentido maior, integrador que a
literatura proporciona.
Por isso, mais uma vez grata pela
partilha desta viagem!
Beijo.
Revisitar estilos, cenários e recursos intrínsecos nas pontas dos dedos nos permite novas visões que emanam da tessitura das palavras...
Bela recaída, Manuel... que outras venham.
Beijo.
Genny
Não deixas de me surpreender, meu Amigo Manuel. Confesso que gosto muito do estilo.
Um beijo.
Hoje, ainda não lhe disse k escrevia muitoooooooooooooooo bem? Pronto, digo-lho agora, ontem, antes de ontem e daqui a uma ou duas semanas, SEMPRE.
"Preto é preto e branco é branco", sem tirar nem pôr.
Maria Adelaide, sempre "essa" Maria Adelaide! Recordações de vivências, k, ainda hoje estão pulsando.
Ria, Manuel! Solte uma gargalhada, LIBERTE-SE e venha, "venha-se" com a lembrança de "coisas"/pessoas, que "usou". Souberam-lhe a pouco, e agora, maldita vida, as coisas já não são, já não conseguem ser como dantes.
Fique bem!
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