Existe um sofisma que tem vindo a ser
profusamente explorado, em comentários e debates na comunicação social, a
propósito da mais recente contestação popular ao ministro Relvas e ao governo
em geral.
Conhecem-se os episódios. O ministro foi
a uma Instituição Universitária, onde nunca antes havia entrado, para aprender
o que fosse, tendo em vista falar sobre “comunicação social”, a convite de uma
televisão privada. Com cânticos, apupos e hinos os jovens presentes obrigaram o
ministro a sair da sala com o rabo entre as pernas, sem qualquer hipótese de
proferir sua douta conferência.
A partir daqui, “caiu o Carmo e a Trindade...” : haja Deus que o ministro foi
impedido de falar e, em consequência, a liberdade de expressão, quiçá a
Democracia estão em perigo...
Fossem eles apenas os escribas e as
vestais do governo a soprar semelhante clamor e estas linhas ficariam caladas.
Mas acontece que individualidades socialistas, parecem embarcar em tal sofisma,
que na voz qualificada do seu secretário-geral o comportamento dos jovens é
qualificado como “abuso”, imaginem...
Houve até um jornalista, com crónica
diária adjudicada no DN, que fez umas flores jornalístico-políticas, indo
desenterrar o “Maio de 1968”, em França, e uma célebre boutade de Cohn-Bendit, referindo-se ao poeta comunista Louis
Aragon, que “até os traidores merecem
falar”.
Diga-se de passagem que, em matéria de
traições, estamos conversados – conhece-se o itinerário político do “revolucionário” Cohn-Bendit, enquanto o
poeta morreu como viveu, ou seja, comunista...
Mas isso são águas passadas. Convém
esclarecer, no entanto, que Cohn-Bendit e Aragón, apesar de divergentes, estavam no
mesmíssimo plano da Palavra – não havia ali ministro ou autoridade que pudesse
conceder tal direito – a palavra era
livre.
Assim, o essencial da questão, como se
compreende, é outro. Reside no embuste da ofensa à liberdade de expressão, pelo
facto dos cânticos e apupos dos jovens terem abortado a ministerial
conferência.
Vejamos. Bem vistas as coisas, o
complexo de poderes que conformam, no seu conjunto, o “poder de Estado”, em
diferentes modulações conforme os respectivos titulares (Presidente da
República, Assembleia da República, Governo e Tribunais), reduz-se ao poder
coercivo, máxime o direito de violência legítima sobre os
cidadãos e, noutro plano, ao “poder da Palavra”, ou seja, a
persuasão “livre” dos cidadãos mediante o discurso político e ideológico.
Se bem compreendo, será a imbricação
destes dois poderes - poder coercivo e
poder discursivo - que, em síntese, define a natureza do poder de Estado, de que o Governo é
intérprete privilegiado. Em Democracia, ao menos em tese, o poder discursivo, ou poder da Palavra, tenderá a ganhar
espaço ao poder repressivo, no quadro
do exercício e funcionamento dos poderes de Estado. O que justifica que a contestação popular assuma também formas de contestação do discurso do governo.
Na realidade, o direito de expressão do governo e dos seus membros não tem correspondência no direito de expressão dos cidadãos, pois se encontram em planos diferentes, ou se se quiser, governo e cidadãos “falam” de lugares diferentes – os cidadãos do espaço da cidadania, ou da praça pública, ou da rua e o governo do lugar do poderes de soberania, investido de toda a sua autoridade política.
Em bom rigor, o governo não é sujeito do
direito de expressão, que em
democracia, é conferido aos cidadãos, mas titular do poder da palavra, que se exerce como poder soberano, sem restrições
e com a maior eficácia, designadamente, para condicionar os direitos
individuais.