Fui buscar inspiração para esta crónica
a um texto de Karl Valentin, comediante e realizador de cinema bárbaro, companheiro
de Berthold Brecht, cujas parcerias ficaram célebres. A peça em referência, de
um humor corrosivo, foi encenada, como muitos se recordarão, por Luís Miguel
Cintra, no Teatro da Cornucópia – Teatro do Bairro Alto - em Lisboa, nos idos
anos do início da década de oitenta (Março de 1979).
Dizem os estudiosos que o humor de
Valentin “é uma espécie de
antídoto contra a vida acidentada que teve durante duas guerras” e se
ergue, subversivo e cáustico, zurzindo injustiças sociais e “narizes de cera”.
Intemporal, portanto!...
Assim, a sua actualidade, à época da
estreia da peça em Lisboa, nos alvores do cavaquismo, já então prenunciadores,
para os espíritos mais argutos, dos obtusos caminhos percorridos pela sociedade
portuguesa, desde então.
Revistar Valentin hoje é assim, mais que
um exercício de memória, é uma questão de higiene mental…
Ora reparem. Em jornal de referência, um
dos intelectuais orgânicos do actual poder político (VPV – in “Público” de
29.10.11), vem à carga fustigando, mais uma vez, os funcionários públicos e
pensionistas que, no seu dizer, têm histórica e merecidamente muito má fama. Calaceiros,
está bom de ver!...
Sempre fundado em eruditas
considerações, que patego não alcança, insurge-se o iluminado articulista
contra a artificial divisão, entre a dita “sociedade civil” e “essa abjecta classe de mandarins”, que medra a expensas do Estado, introduzida
pelo Presidente da República com a sua “boutade”
(que de outra coisa não passa e de que certamente já se arrependeu) sobre a “iniquidade
fiscal” e o confisco do subsídio de Natal e de férias aos pensionistas e
trabalhadores da administração pública.
Claro que enormidade obriga o articulista
a afinar o tiro. E aquilo que era “abjecta
classe de mandarins” que ninguém convence e, em seu douto dizer, sem que ninguém “na posse de juízo pense tal coisa”,
convolou em mera cambada de madraços. Arraia-miúda, portanto, que a classe de
mandarins come pela calada…
Há então que exterminá-los. Lentamente!...
Como o Estado Social (sempre em mira de
seu azedume) foi inundado de “multidão de
pretendentes sem qualquer qualificação útil, a não ser o seu compreensível
desejo de ganhar e subir na vida”, e já que o despedimento era e é impossível,
a única solução é então “pouco a pouco
tornar a situação de funcionário público mais desagradável: reduzindo
ordenados, suprimindo subsídios, removendo privilégios, até se estabelecer um equilíbrio
entre os serviços que os portugueses (quais?) não dispensam e os meios que o
Estado conseguir arranjar”…
Querem estratégia mais eficaz?! Claro
que tal desígnio não configura nenhuma iniquidade fiscal ou outra – é mera
filha da putice! Com desculpa pelo plebeísmo…
Como se o Estado tivesse a obrigação de
pagar aos credores das parcerias público-privadas, os juros de usura dos credores internacionais,
ou pagar aos credores que defraudaram os depositantes no BPN e no BPP, mas não às
modestas pessoas que trabalham no sector público!...
E já agora, para que não se diga que não
sou solidário com o esforço de redenção da Pátria, ouso sugerir ao prestigiado
articulista, que do alto da sua coluna, seja um pouco mais radical (um pouco
mais de azul e será Céu!...) e preconize para os pensionistas a injecção atrás da
orelha e para os trabalhadores no activo o trabalho sol a sol, naturalmente,
sem remuneração, ou quaisquer subsídios e privilégios…
E assim teremos Finanças Públicas
sólidas e economia robusta!...
E a paz nos cemitérios!...