“Quem quer conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão”!…- dizia-se, no espaço social rural, onde no tempo da infância modelei o carácter. A “vara” era, naturalmente, a “vara do poder”, que ainda hoje, nas instituições mais conservadoras, tem a devida consagração.
Bastará recordar, por exemplo, o “ceptro régio” nas monarquias, ou “báculo episcopal” na igreja católica, que outra coisa não são, como sustentam os antropólogos, que reminiscências históricas, em que a vara era também instrumento de punição física...
De facto, quem algum dia teve a oportunidade de ler Michel Foucault sabe que não há verdadeiro poder (político e social) sem poder efectivo sobre os corpos, seja na fogueira, no pelourinho, nas prisões ou nos hospitais psiquiátricos. Ou na organização física da vida quotidiana, mediante a atribuição (ou não) de um salário…
Seja como for, a liturgia do poder, naquele tempo, era de uma singeleza exemplar – uma simples vergasta de freixo entronizava, simbolicamente, a arquitectura social daquele microcosmo, onde cada um sabia, exactamente, o seu lugar…
Claro que, contrariamente ao que sustenta um certo idealismo romântico, a sociedade não era homogénea; pelo contrário, as fissuras e as clivagens sociais eram profundas e ferozes.
Aliás, o lugar social de cada um reflectia-se, na própria ocupação física do espaço publico, com lugares reservados na Igreja e na praça e outros locais de ocupação colectiva. E até no exercício de determinadas profissões. Ou a honra da “atribuição da vara”, que apenas alguns estava reservada… E, que se era um privilégio, era também múnus e dever social de a todos velar de igual forma…
Em síntese, a vara do poder, simbolizava o poder social e político sobre a comunidade (não o poder de Estado, que apenas ali chegava para colher impostos), selectivamente, atribuído às famílias que, pelo seu ascendente social, granjeavam o respeito da comunidade. Nesse ritual de poder, a dimensão do património era elemento essencial, como bem se compreende…
É óbvio que tal modelo social ruiu. Nem eu sou saudosista desses tempos de miséria e obscurantismo, como farão justiça de considerar. Mas, como bem sabem, o tempo sociológico, é um tempo de amplitude ampla, cujo paradigma permanece para além do ritmo, ou seja, do esgotamento dos seus efeitos…
Admito, portanto, que muitos dos epifenómenos da nossa vida política ganham plena expressão e significado, à luz da matriz do nosso passado (ainda quente) e do modelo social rural, que mal ultrapassamos…
Vêm à ideia estas desconchavadas linhas, perante a despudorada pulsão dos representantes do “melhor” capitalismo caseiro, em ocuparem, lá do alto dos seus milhões, o espaço mediático (que outrora se cingia aos limites da praça pública) e o centro da vida colectiva, como se o País fosse uma coutada privada e a nossa democracia tributária da “vara do poder” (ou da chibata) com que gerem os seus interesses...
Recentemente, foi o merceeiro mor do reino, um tal senhor Alexandre de sua graça, que em directo para quem o quis ouvir se insurgiu, a propósito não se almeja de quê, contra o senhor Sócrates e as políticas do seu governo, mimoseando o primeiro-ministro com alguns adjectivos pesados, dos tais que nem Mafoma usaria contra o toucinho…
É certo que o senhor Sócrates merece todos esses adjectivos e outros que tantos. Por outras e boas razões que não as do senhor Alexandre…
Mas uma coisa é apelidar o primeiro-ministro com uns sonoros adjectivos numa manifestação de rua, como expressão colectiva de descontentamento social. E outra é o chairman de um próspero grupo económico, por ganância ou desfavor, do alto da sua pesporrência, na televisão, vir à praça pública, desrespeitar um órgão de soberania. Urgiria, a propósito, recordar-lhe que o “lugar social” donde se fala releva, decisivamente, na ressonância do sentido de uma qualquer expressão…
Ao que consta, o primeiro-ministro terá reagido, na oportunidade, como se impunha, mandando dizer ao encrespado ricaço que “não basta ser rico para se ser bem-educado…”.
Por mim, a quem não seduzem punhos de renda, dir-lhe-ia que são aleijões de marçano, que os milhões não disfarçam…
“Quem quer conhecer o vilão…”