sábado, junho 28, 2008

A última cena de Ofélia...

Não sei ao certo como o “Xico Mariazinha”, com a Ofélia a tiracolo, apareceu no grupo. Sei, porém, da inegável estima que meu amigo Zeca, alentejano de Beja e predador de donzelas desvalidas, dedicava ao jovem casal. Na verdade, para alguns de nós, aquela amizade tornava-se suspeita. Aquilo ainda acabava mal!...

Tanto mais que a Ofélia, quando o Zeca chegava, desfazia-se em blandícias com o “seu Xico”, mas era o Zeca quem devorava com seus belos negros, acesos como carvão incandescente... Sempre a primeira a rir-se das suas pilhérias. E a procurar, estrategicamente, o lugar na mesa do café, de forma que a perna, “inadvertidamente”, tocasse o joelho do Zeca. Sempre, claro, de atenções redobradas com o “seu Xico”. Como quem esconjura pensamentos malignos...

Enfim, pequenos prenúncios de sangue ardendo nas faces de Ofélia, quando meu amigo Zeca elogiava um pormenor da sua toillete ou as “façanhas” escolares de Xico, esforçado estudante de Direito!...

Um dia, na ausência do casal, meio a rir meio a sério, entre duas “imperiais”, alguém insinuou que ele, Zeca, “um dia ainda acabava por saltar para a espinha da Ofélia”.

- “Tu és parvo ou quê?... “ – indignou-se o Zeca – “eu sou amigo do gajo, ouviste?!”...

Era assim o Zeca. O belo sexo merecia-lhe classificação escatológica, do tipo pirâmide invertida: a mãe e a irmã, (fora da escala), as mulheres ou namoradas dos amigos (que eram intocáveis), e as “outras” (que o Zeca desfrutava); e, no final da escala, uma última categoria, que pudor impede de referir, mas que o Zeca diria serem “fêmeas de boi!”...

Ora, conhecendo o Zeca, eu próprio ficava intrigado com o fraternal desvelo que dedicava ao jovem casal de namorados. Em rigor, nenhuma afinidade. O “Xico Mariazinha” era filho único de militar de carreira e de uma abastada proprietária rural. A educação estivera a cargo de um tio padre, na ausência do pai em diversas comissões de serviço em África. A Ofélia era vizinha e amiga da família. Seria motivo de alegria e de girândolas familiares o dia em que a Ofélia fosse “entronizada” como esposa do Xico. Que apenas a conclusão do curso adiava...

Foi, assim, na dupla qualidade de namorada e vigilante da salvação da alma do Xico, que a Ofélia fora “destacada” para a capital, onde mal frequentava um curso de enfermagem. O “seu Xico” era, assim, o seu mundo e sua devoção. Mexia-lhe o açúcar. Administrava-lhe a mesada. Passava a limpo os apontamentos. Lembrava-lhe os deveres religiosos. Velava pelo vinco das calças... Enfim, uma dedicação de extremos maternais...

Que tinha o Zeca a ver com isto?! - interrogava-me, por vezes...

O Xico, apesar do sufoco, tinha sangue na guelra. E gostava de umas saídas, para além da Ofélia. Era, por isso, natural que a virginal Ofélia fizesse umas birras. Solícito, lá estava, então, o Zeca dando conselhos, tentando compor as coisas...

Numa ocasião, porém, as coisas não iam ao lugar. Desesperada a Ofélia – contou-me o Zeca uns bons anos depois – telefonou e propõem-lhe um encontro. Mais que nunca precisava de apoio, choramingava do outro lado do telefone. Que ele Zeca não lhe faltasse neste momento de aflição. Que por amor de Deus, que pela sua amizade, viesse. Que seria mulher do Xico ou de nenhum outro. Tinha, aliás, uma proposta que o convenceria a interferir a seu favor...

Entre contrafeito e intrigado, o meu amigo Zeca foi. Encontram-se no lar da Ofélia, na salinha confortável das visitas, onde poderiam ter uma conversa delicada, sem os ouvidos indiscretos das colegas ou das freiras...O Zeca esperava uma mulher desfeita em desgosto. Ficou, por isso, perplexo quando lhe apareceu uma Ofélia sorridente e “negligé”, em toillete de trazer por casa, onde sobressaíam uma camisa de dormir curtíssima e a mal disfarçada nudez das coxas, no robe flamejante de cor e de sensualidade...

O Zeca pasmava. Sobre o motivo da visita, a páginas tantas, a Ofélia, fazendo sempre grandes protestos de amor pelo “seu Xico”, entre dois descruzar de pernas, foi sugerindo ao meu amigo Zeca, alentejano de Beja e predador de donzelas desvalidas, que ela, Ofélia, seria sua amante, desde que este “lhe trouxesse o seu Xico de volta”...

- “Imagina-me tu, aquela vaca!...” – ferveu o Zeca com uma gargalhada de raiva indignada...

Foi o fim da macacada. O Zeca, leal aos seus amigos, não resistiu. Contou a cena ao “Xico Mariazinha”. Fez mal, reconhece agora...

Depois disso, o Xico e a Ofélia desapareceram da circulação. Soubemos depois que a Ofélia casou, passado pouco tempo, com um tipo da Marinha Mercante. Nas horas de solidão matrimonial, dedicou-se a promover umas festarolas divertidas na sua residência, na Cruz Quebrada.

O “Xico Mariazinha” voltou às berças. Casou, então advogado reconhecido, com uma menina da terra. E ficou com duas!... (Mas isso são contas de outro rosário, de que um ia darei nota, se vier ao caso.)

E regressou a Lisboa, há uns tempos, feito deputado...

O Zeca é que, ainda hoje, não perdoa a última cena da Ofélia e o esfriar da amizade com o Xico Mariazinha

- “Há coisas que um gajo prefere não saber, pá!... ” – desabafa, encolhendo os ombros...

Agora digam-me se o meu amigo Zeca, entre as suas consabidas qualidades, não é também um verdadeiro filósofo...

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Bom fim-de-semana. Cuidado com os calores de Verão ...

19 comentários:

Unknown disse...

Por uma vez, que nos mostras o Zeca com um genuíno e estóico sentido ético, a "coisa" correu-lhe mal.
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Estranhamente, não cedeu aos caprichos de uma Ofélia um bocado promíscua [para o meu gosto...] e perdeu um amigo!
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Entre homem e mulher, diz-se, ninguém meta a colher.
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[Beijo...]

mariam [Maria Martins] disse...

cenas d`um inconfessável quotidiano!

"chiça" amigos assim... complicadito!até mesmo para o"magano" do seu amigo Zeca...

bom fim-de-semana
um sorriso ;)

Maria Laura disse...

O Zeca com "pruridos" éticos! Quem diria... Pois, claro que me estou a esquecer dos princípios que norteiam as actividades predatórias dos machos latinos. :)
Também, se o Xico também gostava das suas "saídas", só merecia o que a Ofélia lhe queria dar. Por amor, claro! :))

luis lourenço disse...

Este enredo em filme rendia bastante...Com as histórias do zeca bem podias publicar um romance...venda garantida...Muito bem escrito com fantásticos ingrdientes para os segredos da alcova, do amor e da amizade...faz bem este fino humor e dá que pensar.

abraços

Justine disse...

E para quando uma história que não tenha como heróis homens machistas e "predadores de donzelas"(!...)? É que não há paciência para os aturar!
Há para aí tanta gente boa a merecer uma história bem contada...

Manuel Veiga disse...

olá Justine, o que por aí vai...

a "gente boa" (de que faço parte) dispensa as minhas historietas... e o meu divertimento! espero bem... rss

beijo

Anónimo disse...

Em cima diz: enviar um comentário para: Relógio de Pêndulo (?)
Começo logo a rir-me...
Estranha coisa esta de escrevermos para um relógio....srsr

Cada vez que aqui venho fico surpreendida. Mas que veia essa para o humor, perante as "coisinhas da vida"...do Zeca. Que entretanto também deu "uma ou mais voltinhas" com a mulher do administrador, agora é a Ofélia... - mas que grupinho seu...esse! E que cusquice divertida também! srsrs - penso que daria uma história em banda desenhada e tanto!
que gozo!srsrsr
Tem algum livro publicado? Nunca escreveu pequenas cenas para televisão, ou afins? Sei lá...algo do género, para que todos pudessem usufruir dessa sua veia espirituosa...
srsrsrs

fique bem...

Mariz

isabel mendes ferreira disse...

:)




bom dia.



cenas....:)



___________

M. disse...

Quantos Zecas haverá por aí? Com este calor o perigo é enorme...

Eme disse...

Eu adoro as tuas histórias de fim de semana! ao estilo humor do herético.
Bem o Zeca podia ter ficado calado e mudado a história? o deslize da Ofélia.. enfim, era por uma boa causa, tão empenhada estava que não tendo outro modo de agradecer ofereceu o corpo.
Não resultou..

Mas no amor vale tudo...

Mel de Carvalho disse...

Caríssimo Herético,

Venho a seguir com “devoção” a vida atribulada do seu “amigo Zeca”. Devo confessar-lhe que é raríssimo encontrarmos um registo assinado por um homem que, de forma tão arguta, tão sagaz, trace o perfil do auto intitulado “macho latino”, conquistador de mocinhas (e senhoras) desvalidas e carentes.

Como é sabido, qualquer cartons, tal “retrato robot”, assenta no exagero do recorte. Na repetição, no reforço da ideia. É disto que estes textos tratam. Passam uma mensagem subtil, revelam um mundo “secreto” de amores e desamores pouco ortodoxos, prosaicos (uns conseguidos outros nem tanto) que, determinados seres ostentam como galardões. Como insígnias apostas às muralhas da sua nulidade.
Disse seres, porque, estou em querer que “nem os homens são de Marte, nem as mulheres de Vénus”. rsrs

Todavia, o que está aqui em jogo, aquilo que, para além duma escrita escorreita, doutrinada na essência do verbo e na qualidade organizativa, o que está aqui em causa, dizia, é a capacidade inata (ou adquirida, na verdade não sei), do autor nos ajudar a entrar num mundo machista, através do seu olhar masculino. São aspectos “menores”, mas que fazem toda a diferença.

Quantos não são os Zecas deste mundo? E as Ofélias desvalidas?
Finalmente, e porque me já alonguei, registo que a idade nos vai trazendo o tal “sal e pimenta” – em clara alusão à cor dos nossos cabelos … e nos vai levando o véu da inocência …
E se assim é, porque não nos rirmos destas histórias (fantasiadas, semi-verdadeiras ou não)?

Que se cuidem os Zecas e que se afastem o mais possível de “heréticos” capazes de “profanar” os altares em que se endeusaram.

Bem-haja, Herético, conte-nos tudo… nós adoramos saber com quantas “varas se faz uma canoa” …

mdsol disse...

gostei das "blandícias"mas não gostei do "saltar para a espinha"...
:)

MS disse...

... ficou com duas?!? Tipicamente 'lusitano'!

Esse teu 'humor' sinistro ;)
mas bem narrada a tua história!

Boa semana!
Um beijo amistoso

jrd disse...

Uma delícia.
Em matéria de amores, nem todos os Zecas têm tendência para ser Hamlet.

éme. disse...

Eu sou maluca por narrativas de vida!!
Ainda bem que há Zecas e artistas e coiso e tal que andam pela vida a vivê-la como melhor sabem e melhor que tudo isto é haver quem nos conte, escrito, cada imprevisto desses que vivem os dias ao seu jeito.
Grandes histórias!! ;)

Tinta Azul disse...

Pois Zé.
Os duplos vínculos...

Isamar disse...

pois amigo estas histórias, contadas ao jeito de Eça,são deliciosas. Penso eu e afirmo-o sem temor. Bem escritas, com um vocabulário fluente e um imaginário ainda melhor. Continua amigo que , com o tempo, suspeito que isto dará livro, tema para filme, banda sonora a preceito.

Não, não estou a brincar. Estou a falar para o escritor que o és na verdadeira acepção da palavra.
Fico deslumbrada a ler-te.
Beijo

Licínia Quitério disse...

Ena, o que vai por aqui. Parece que os conheci a todos. A Ofélia Cor-De-Fogo, o Xico Que-Deus-Me-Perdoe e o Zeca Voz-De-Travesseiro.

Cenas de antanho? Nem por isso...

jawaa disse...

Realmente, isso dava um belo romance, melhor que esses que vendem milhões por aí porque tens a arte que lhes falta (é só uma opinião).
Claro que o tema é batido mas os Zecas e as Ofélias não acabaram, não acabam nunca.
Sou suspeita na apreciação da tua escrita porque sou fervorosa admiradora da prosa de Aquilino e acho tão saborosa a forma como ele define as mulheres e caracteriza os homens...

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