Não sei ao certo como o “Xico Mariazinha”, com a Ofélia a tiracolo, apareceu no grupo. Sei, porém, da inegável estima que meu amigo Zeca, alentejano de Beja e predador de donzelas desvalidas, dedicava ao jovem casal. Na verdade, para alguns de nós, aquela amizade tornava-se suspeita. Aquilo ainda acabava mal!...
Tanto mais que a Ofélia, quando o Zeca chegava, desfazia-se em blandícias com o “seu Xico”, mas era o Zeca quem devorava com seus belos negros, acesos como carvão incandescente... Sempre a primeira a rir-se das suas pilhérias. E a procurar, estrategicamente, o lugar na mesa do café, de forma que a perna, “inadvertidamente”, tocasse o joelho do Zeca. Sempre, claro, de atenções redobradas com o “seu Xico”. Como quem esconjura pensamentos malignos...
Enfim, pequenos prenúncios de sangue ardendo nas faces de Ofélia, quando meu amigo Zeca elogiava um pormenor da sua toillete ou as “façanhas” escolares de Xico, esforçado estudante de Direito!...
Um dia, na ausência do casal, meio a rir meio a sério, entre duas “imperiais”, alguém insinuou que ele, Zeca, “um dia ainda acabava por saltar para a espinha da Ofélia”.
- “Tu és parvo ou quê?... “ – indignou-se o Zeca – “eu sou amigo do gajo, ouviste?!”...
Era assim o Zeca. O belo sexo merecia-lhe classificação escatológica, do tipo pirâmide invertida: a mãe e a irmã, (fora da escala), as mulheres ou namoradas dos amigos (que eram intocáveis), e as “outras” (que o Zeca desfrutava); e, no final da escala, uma última categoria, que pudor impede de referir, mas que o Zeca diria serem “fêmeas de boi!”...
Ora, conhecendo o Zeca, eu próprio ficava intrigado com o fraternal desvelo que dedicava ao jovem casal de namorados. Em rigor, nenhuma afinidade. O “Xico Mariazinha” era filho único de militar de carreira e de uma abastada proprietária rural. A educação estivera a cargo de um tio padre, na ausência do pai em diversas comissões de serviço em África. A Ofélia era vizinha e amiga da família. Seria motivo de alegria e de girândolas familiares o dia em que a Ofélia fosse “entronizada” como esposa do Xico. Que apenas a conclusão do curso adiava...
Foi, assim, na dupla qualidade de namorada e vigilante da salvação da alma do Xico, que a Ofélia fora “destacada” para a capital, onde mal frequentava um curso de enfermagem. O “seu Xico” era, assim, o seu mundo e sua devoção. Mexia-lhe o açúcar. Administrava-lhe a mesada. Passava a limpo os apontamentos. Lembrava-lhe os deveres religiosos. Velava pelo vinco das calças... Enfim, uma dedicação de extremos maternais...
Que tinha o Zeca a ver com isto?! - interrogava-me, por vezes...
O Xico, apesar do sufoco, tinha sangue na guelra. E gostava de umas saídas, para além da Ofélia. Era, por isso, natural que a virginal Ofélia fizesse umas birras. Solícito, lá estava, então, o Zeca dando conselhos, tentando compor as coisas...
Numa ocasião, porém, as coisas não iam ao lugar. Desesperada a Ofélia – contou-me o Zeca uns bons anos depois – telefonou e propõem-lhe um encontro. Mais que nunca precisava de apoio, choramingava do outro lado do telefone. Que ele Zeca não lhe faltasse neste momento de aflição. Que por amor de Deus, que pela sua amizade, viesse. Que seria mulher do Xico ou de nenhum outro. Tinha, aliás, uma proposta que o convenceria a interferir a seu favor...
Entre contrafeito e intrigado, o meu amigo Zeca foi. Encontram-se no lar da Ofélia, na salinha confortável das visitas, onde poderiam ter uma conversa delicada, sem os ouvidos indiscretos das colegas ou das freiras...O Zeca esperava uma mulher desfeita em desgosto. Ficou, por isso, perplexo quando lhe apareceu uma Ofélia sorridente e “negligé”, em toillete de trazer por casa, onde sobressaíam uma camisa de dormir curtíssima e a mal disfarçada nudez das coxas, no robe flamejante de cor e de sensualidade...
O Zeca pasmava. Sobre o motivo da visita, a páginas tantas, a Ofélia, fazendo sempre grandes protestos de amor pelo “seu Xico”, entre dois descruzar de pernas, foi sugerindo ao meu amigo Zeca, alentejano de Beja e predador de donzelas desvalidas, que ela, Ofélia, seria sua amante, desde que este “lhe trouxesse o seu Xico de volta”...
- “Imagina-me tu, aquela vaca!...” – ferveu o Zeca com uma gargalhada de raiva indignada...
Foi o fim da macacada. O Zeca, leal aos seus amigos, não resistiu. Contou a cena ao “Xico Mariazinha”. Fez mal, reconhece agora...
Depois disso, o Xico e a Ofélia desapareceram da circulação. Soubemos depois que a Ofélia casou, passado pouco tempo, com um tipo da Marinha Mercante. Nas horas de solidão matrimonial, dedicou-se a promover umas festarolas divertidas na sua residência, na Cruz Quebrada.
O “Xico Mariazinha” voltou às berças. Casou, então advogado reconhecido, com uma menina da terra. E ficou com duas!... (Mas isso são contas de outro rosário, de que um ia darei nota, se vier ao caso.)
E regressou a Lisboa, há uns tempos, feito deputado...
O Zeca é que, ainda hoje, não perdoa a última cena da Ofélia e o esfriar da amizade com o Xico Mariazinha
- “Há coisas que um gajo prefere não saber, pá!... ” – desabafa, encolhendo os ombros...
Agora digam-me se o meu amigo Zeca, entre as suas consabidas qualidades, não é também um verdadeiro filósofo...
.................................................................
Bom fim-de-semana. Cuidado com os calores de Verão ...