segunda-feira, setembro 04, 2006

Há Mais Vida Além do Futebol?


“Os Homens inventaram o Estado para não obedecerem aos homens”!... Ocorre-me esta feliz expressão de George Burdeau, perante a actual questão do futebol português, presente na ordem mediática e a chantagem dos organismos de tutela internacionais sobre o País e os clubes nacionais, se as conhecidas “desavenças” internas, nesta matéria, não forem resolvidas no prazo de 15 dias.

O meu interesse pelo futebol é meramente lúdico. E se me ocupo agora deste assunto é porque o considero revelador, em diversos planos, dos valores da nova “ordem mundial” e do pensamento neoliberal dominante. E, submergindo a soberania dos povos, revelador também das consequentes “perversões” a que o Estado de Direito e a lei estão sujeitos.

Procurarei explicar-me.

Como se sabe, historicamente, são inegáveis as virtudes do Estado pluralista, concebido como harmonização dos interesses, que se debatem no interior da sociedade. Na sua configuração teórica, o Estado pluralista tende assegurar, ao máximo, a coincidência entre a vontade dos governantes e dos governados e, em consequência, é a máxima expressão “do governo do povo, pelo povo”.

Mas a sua virtude, é também a sua fraqueza. A natureza pluralista do poder de Estado, assente na diversidade de interesses sociais e opções políticas, acarreta também a consequência de acentuar o chamado “o imperialismo dos poderes de facto” ou o “advento de uma nova feudalidade”.

O que caracteriza esta nova faceta do Estado não é tanto a diversidade de interesses e grupos de pressão no interior da sociedade. Numa sociedade aberta, tais grupos e interesses, organizados ou não em partidos políticos, são a seiva que vivifica a democracia. O que define tal conceito “feudalidade” é o carácter difuso desses interesses e a sua avidez em relação às prerrogativas de que o Estado é titular.

Hoje em dia, à escala mundial, os “poderes de facto” assaltam o poder estatal não apenas para fazer valer os seus interesses, mas também para se cobrirem com a sua legitimidade. “O que eles querem – escreve G. Bordeau em “O Estado” – não é fazer a sua própria lei, mas ditar o conteúdo dela à lei do Estado...”

Que melhor exemplo que o futebol profissional?!... Porventura, o presidente da Liga de Clubes ou Presidente da Federação de Futebol não serão verdadeiros “senhores feudais”, autênticos “barões”, perante as quais o “poder Estado” se curva reverente e solícito?! Será necessário evocar exemplos recentes ou passados?!...

O mundo de futebol é, efectivamente, um verdadeiro “Estado dentro do Estado” com leis e jurisdição própria, como a presente “crise” bem demonstra. Quais leis da Assembleia da República, quais quê?!... Se existem, é necessário “interpretá-las” de forma a adequarem-se às normas e regulamentos próprios... Separação de poderes e jurisdição independente dos tribunais para quê?!... São mais “eficazes” os órgãos próprios, ainda que correndo o risco de não fazerem justiça nenhuma, porquanto julgam em causa própria...

E quanto a “tutela internacional” do futebol profissional, estamos conversados. Como é conhecido, a FIFA é uma verdadeira multinacional que movimenta milhares de milhões de euros e cujo Presidente – a fazer fé nas notícias – não aceita ser questionado sobre a corrupção, que lavra, endémica, naquele organismo.

No entanto, é essa individualidade e tal instituição quem, num complexo jogo de espelhos, pressiona a Federação Portuguesa de Futebol, que pressiona a Liga, que, por sua vez, pressiona os clubes, que, em conjunto, pressionam o Estado, o Governo e os Tribunais, tudo em nome do cumprimento dos “regulamentos” e da “legalidade” futebolística, está bom de ver... Sem que alguém pergunte à “senhora dona FIFA”, quais os poderes cívicos, ou políticos, em que está investida para proibir um País soberano de participar em competições internacionais...

Claro que, em rigor, não nos poderemos surpreender com este “buraco negro” da ordem jurídica (como lhe vi chamar). O Estado de direito baqueou completamente face aos fenómenos de globalização. O futebol é apenas um sintoma, que assume extraordinária importância mediática, pelas multidões que arrasta.

Para além dele, outros interesses, tanto ou mais poderosos, longe da ribalta dos média, movimentam-se na discrição dos gabinetes para reduzir a dignidade do(s) Estado(s) soberanos a um mero aparelho burocrático de reprodução dos seus desígnios económicos. E a dignidade da cidadania à “conformação/formatação” dos indivíduos, cujos “ideais” se resumem às “epopeias” futebolísticas ou ao universo dos centros comerciais...

13 comentários:

Lord of Erewhon disse...

Há muitos anos li um book de F. C. - não me lembro o título nem autor - em que o mundo estava no poder de Corporações, tipo impérios e monopólios...
Que é feito de uma coisa chamada Estado?

Licínia Quitério disse...

Que bela lição que teve, entre outras, a virtude de por em ordem as minhas ideias sobre o assunto.
Todo este cenário me incomoda. A ponto de ter dificuldade em seguir um telejornal em que a abertura é o massacre futebolístico.
Bom dia para ti.

M. disse...

Gostei de ler-te. Mais uma vez um problema trazido ao nosso convívio com a lucidez que te é habitual. Ao contrário das notícias com que somos agredidos diariamente.
Obrigada pela parte que me toca.

Diafragma disse...

Absolutamente de acordo.
Aliás, e embora isto pareça absurdo, estou absolutamente convencido que o feudo (ou lobby) do futebol mundial é até o mais inofensivo (e bacoco?) de todos, quando comparado com o que se passa no mundo verdadeiramente global das multinacionais.
Referes os "poderes de facto". Num livro de chorar a rir do guru Ichak Adizes (Como resolver a crise da má gestão), ele a certa altura refere o seguinte: "Se queres saber quem manda na empresa não ligues ao seu organograma. Procura mas é as fontes de poder real, que não têm nada a ver com os organogramas oficiais".
A grande diferença para mim, é que o mundo empresarial "fá-las pela calada", e não tem galos a gritar a toda a hora na TV.

JPD disse...

Ao ver o debate na RTP acabei por não ficar desiludido. Não esperava grande coisa.
O que me incomodou foi o acinte do Madail e do "Major" perante a questão do dirigismo desportivo.

O teu texto está excelente.
Um abraço

Maria P. disse...

Eu nem digo nada.
Até me sinto pequena depois destes comentários...não entendo nada de futebol...
Apetece-me dizer Jericopo, copo, copo...

vida de vidro disse...

Sabemos que o Estado é pressionado (e pressionável) pelo referidos "poderes de facto". Sabemos também que "o governo do povo, pelo povo", soa a (má) anedota, perante o que todos os dias vemos acontecer.
Mas esta história do bendito "caso Mateus" (alguém sabe quem é o senhor?) ultrapassa as raias do inacreditável. Como é possível tamanha ingerência que não admite que o recurso para um tribunal nacional possa pôr em causa uma decisão de uma tal de FIFA??
O teu post dá a lúcida "visão abrangente". Eu ainda estou para aqui a matutar no caso que despoletou toda esta polémica... **

Diafragma disse...

E eu nem sei quem é o Mateus nem o que despoletou isto tudo. Nem me parece que valha a pena. No fundo, do que estamos a falar é dos efeitos colaterais (onde é que eu já vi isto...) do Caso Mateus e da FIF(i)A.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Os "interesses", sempre eles, subvertendo a lógica das coisas e moldando-as a gosto e jeito...

O povoléu vai no engodo do "pão e circo", em técnica tão apurada que já nem o preocupa o pão, bastando-se de circo, com mais ou menos palhaçadas.

A anestesia assim se consuma.

Mas como tudo é um processo dinâmico, hoje nem chegam já as religiões para "alimentar" de ópio o povo. Há os futebois e outras cavalgadas.

Como sempre, didático, meu caro.

Um abraço.

Anónimo disse...

Os políticos não passam de meras marionetas, na sua maioria muito feias, às mãos dos grupos de pressão…

Maria P. disse...

Há vida para além do futebol e com mais cores.

Peter disse...

O "caso Bosman"

"O dia 15 de Dezembro de 1995 marcou a jurisprudência desportiva e revolucionou o actual sistema de transferências de futebolistas, em vigor desde 1996.

Há dez anos, o belga Jean-Marc Bosman, jogador não celebrizado na Bélgica e na Europa, entrou para a história do futebol. Mas não se notabilizou pelo talento evidenciado nos relvados. Ficou conhecido, sim, por ter sido o principal responsável pela implementação de um acórdão que "recebeu" o seu nome.

Em final de contrato com o FC Liége, da Bélgica, Bosman tinha tudo acertado para se transferir para o Dunquerque, de França. No entanto, o FC Liége reclamou o pagamento de uma indemnização aos gauleses. Firme nas suas convicções, o atleta entendia que o vínculo com o FC Liége terminara e defendia que o Dunquerque não tinha de indemnizar o clube belga.

Bosman aconselhou-se com o advogado Luc Misson e o jurista intentou uma acção junto de um tribunal belga que, por sua vez, colocou a questão ao Tribunal Europeu de Justiça, a mais alta instância judicial da União Europeia (UE).

Depois de analisar o caso, o Tribunal Europeu de Justiça considerou que os fundamentos apresentados pela defesa de Jean-Marc Bosman eram válidos. Um marco na jurisprudência desportiva, que a partir de 1996 procedeu a alterações na lei de transferências aplicável aos jogadores.

Actualmente, os profissionais de futebol que terminem contrato podem circular livremente no continente europeu e os clubes estão autorizados a inscrever futebolistas comunitários sem quaisquer restrições."

O quase desconhecido Bosman, nunca mais encontrou nenhum Clube que o contratasse.
Vive com dificuldades em casa da mãe.

É isto que querem fazer ao "desgraçado" Mateus?

Menina Marota disse...

Eu não gosto de futebol e muito menos do "submundo" que o envolve.
Num País com tantas carências e com tantos problemas por resolver, o futebol vem em 1ª. mão... acho isso insustentável...

Mas fiquei muito mais esclarecida ao ler-te.

Um abraço e grata pela partilha ;)

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